sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Comentário sobre o Livro VIII de "A República", Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.

Até o livro VII, Sócrates desenvolveu o tema da constituição ideal, aquela que permitiria a justiça na cidade. Tal cidade teria as seguintes características: as mulheres e os filhos seriam comuns, as ocupações também seriam comuns, tanto na guerra quanto na paz e os melhores na filosofia e na guerra seriam os reis. Estes seriam sustentados pela cidade, não tendo posses. De fato, tudo seria comum a todos. Cada um teria o trabalho de acordo com a sua natureza. Sendo esta a constituição ideal, resta analisar as demais, que são defeituosas. Este tema dos diferentes tipos de governo já havia sido apresentado anteriormente e é retomado para ser desenvolvido no Livro VIII.
Partindo da aristocracia, Sócrates explica como ela se transforma em timocracia, a constituição que privilegia as honras. A timocracia está entre a aristocracia e a oligarquia. O homem que corresponde a essa forma de governo tem o gosto pelas disputas, é arrogante e menos chegado às musas. É bom ouvinte, mas não é bom orador. Este tipo de homem é violento com os escravos, brando com os homens livres e bastante submisso aos governantes. Gosta do poder e das honras e pensa que as terá através de seus feitos na guerra. Sua natureza é avarenta, pois, segundo Sócrates, sua virtude não é pura por faltar-lhe a razão e a música.
A oligarquia surge principalmente por causa das riquezas. Aqueles que eram amantes das competições e das honras passam a ser amantes do lucro. Esta cidade se torna duas: a dos pobres e a dos ricos. O homem semelhante a tal forma de governo é trabalhador, parcimonioso e mesquinho.
A transição da oligarquia para democracia acontece, porque todos querem saciar o desejo de serem os mais ricos. Chegará o momento da rebelião, na qual os pobres levantar-se-ão contra os ricos e tomarão o poder. Nesta nova situação, ou seja, na democracia, não se é obrigado a governar nem a lutar. Sócrates descreve a democracia como uma forma de governo agradável sem chefes na qual os homens fariam o que quisessem: ora participando do governo, ora sendo um guerreiro, ora sendo um negociante.
Como esta forma de governo se transformou na tirania? Sócrates se refere à tirania como sendo nobre e a que mais destaca das outras; o leitor aqui poderá ficar em dúvida se esta é uma opinião genuína do filósofo ou se novamente ele usa de ironia. Na democracia, o excesso de liberdade tem como conseqüências que filhos não respeitem pais, discípulos não respeitem seus mestres. Os jovens tornam-se semelhantes aos mais velhos e passam a competir com eles. Os velhos, por sua vez, imitam os jovens para que não pareçam desagradáveis nem autoritários. O leitor aqui vai notar grande semelhança com nossos dias atuais; não é fato que hoje em dia os jovens não respeitam os mais velhos e estes, os mais velhos, tentam parecer jovens o máximo possível? A velhice parece ser desvalorizada na sociedade atual, não sendo vista como sinônimo de sabedoria e sim como sinônimo de decadência.
Sócrates irá explicar porque o excesso de liberdade leva à tirania; segundo o filósofo, agir com excesso geralmente resulta num movimento para a direção oposta; isto ocorre com os animais, com as plantas e mais ainda com as formas de governo. Sendo assim, o excesso de liberdade seria a causa da mudança para a tirania. O povo costuma ter como seu defensor um único homem; é este homem, este protetor que é a raiz de onde brota o tirano. Este protetor provocará guerras para que o povo precise de um chefe; a guerra também lhe dará pretexto para que ele elimine seus inimigos. Ele criará impostos para que os trabalhadores não tenham tempo de pensar em levantes ou revoltas. Com tais ações, ele passará a ser odiado pelo povo, e por causa disto, se cercará de guarda-costas numerosos. Para buscar guarda-costas fiéis, libertará os escravos. Os homens de bem fogem dele. No limite, esse tirano será capaz de usar de violência contra o próprio pai, ou seja, há a total inversão de valores.
Deste modo, o povo, ao fugir da escravidão cai no despotismo dos escravos, ou seja, em troca da liberdade sem limite, recebe a escravidão mais dura e amarga: a submissão aos escravos.Fica claro para o leitor neste momento, que era com ironia que Sócrates se referia à nobre tirania que se destacava de todas as outras. Obviamente, esta forma de governo se destaca negativamente e não positivamente, como se poderia interpretar inicialmente.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

É só uma hipótese...

Bem, vou fazer uma pausa em Platão para discutir uma idéia que me surgiu em meio a uma aula de Estética (Estética, disciplina filosófica e não estética facial rsrsrs).
Estávamos discutindo sobre a obra de arte e a mudança que aconteceu desde o modernismo até a contemporaneidade. O modernismo tinha como proposta "estetizar" a vida no sentido de tornar a obra de arte acessível a toda a população; de fato o projeto moderno se concretizou... o "design" cumpriu esse papel: hoje em dia a "obra de arte" na forma de design pode ser comprada nas lojas de roupas, acessórios, móveis, casas e até nas embalagens de produtos à venda nos supermercados. Praticamente tudo tem design. Mas qual a conseqüência disto? A obra de arte perdeu sua substância, perdeu sua assinatura ou autoria. Quem é o autor daquela embalagem bonita de iogurte? Ninguém sabe. Não que a embalagem seja em si uma obra de arte, mas há uma intenção estética artística no desenho daquela embalagem.
Quanto à substância, a obra de arte tinha uma intenção, tinha uma proposta em geral descrita num manifesto. O design tem tão somente a proposta de ser agradável aos sentidos...
Agora... indo mais no âmago ainda da questão estética: alguém já parou para pensar por que adoramos determinados objetos? Por que desejamos ter determinada roupa ou carro? Alguns poderiam afirmar que desejamos ter uma roupa para nos proteger do frio e um carro para facilitar nossa locomoção. Certo, mas alguém me explica por que queremos comprar um enfeite de mesa ou de parede que não tem nenhuma utilidade a não ser "enfeitar"(ou enfeiar rsrsrs) o ambiente? Bem, meus leitores assíduos já sabem que minhas reflexões freqüentemente me levam ao tempo das cavernas...
Antes disso, convido o leitor a voltar seus olhos para o mundo animal: os adornos são usados por diversas espécies nos rituais de acasalamento. Por exemplo, certas espécies de pássaros buscam materiais na natureza tais como pedrinhas, plantas, sementes para embelezar seus territórios e atrair um parceiro. Ora... nosso amigo (ou amiga) das cavernas também devia ter sua estratégia de embelezamento para atrair (e manter) um parceiro... parte dessa estratégia devia ser manter em seu poder objetos esteticamente atraentes, ornamentos... Alguns afirmarão que tal estratégia ainda hoje se faz presente nos salões de beleza, spas, clínicas de cirurgia plástica e por aí vai - bem menos rudimentar evidentemente. Mas como é que o objeto artístico saiu (se é que saiu) desta motivação tão basal que é a reprodução da espécie, para ganhar ares de sofisticação social, capitalista, multimídia?
Explico: hoje em dia é como se a produção em massa de produtos de design, esvaziassem o sentido original da posse de tais objetos; antes, basal de manutenção da espécie mesmo e hoje, superficial da imagem e da aparência... mas no fundo o que queremos quando desejamos um objeto de arte? Qual a motivação mais profunda desse desejo? A minha hipótese é que no fundo, no fundo, a nossa motivação ainda é basal; sem saber conscientemente, sem buscar isso intencionalmente... os nossos genes nos impelem a atrair o olhar do outro.