Nietzsche: civilização e cultura, Carlos A. R. de Moura, Martins Fontes, 2005, p. 23.
"Essa idéia de espírito livre traz consigo uma recusa da noção clássica de verdade, como um dos "valores" a serem postos em questão, um dos ideais de que o espírito livre se liberta. Em A gaia ciência, Nietzsche apresentará o "desejo de certeza" como sintoma de uma "vontade fraca" do homem de convicções. O quanto alguém precisa de crença, o quanto alguém deseja elemento estável para se apoiar, é revelador do grau de sua força, ou antes de sua fraqueza. E isso quer esse desejo de certeza se manifeste como desejo de certeza religiosa, filosófica, científica ou "ideológica"."
terça-feira, 11 de agosto de 2009
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
Citações
Nietzsche: civilização e cultura, Carlos A. R. de Moura, Martins Fontes, 2005, p. 22, 23.
"Qual é o rosto do "espírito livre", este inimigo confesso das convicções e das certezas?
Nietzsche o descreve em Humano, demasiado humano. O espírito livre é alguém dedicado ao conhecimento, que desdenha a veneração das massas e atravessa o mundo de forma tão silenciosa quanto dele sai. Sendo "inatual", o espírito livre não tem amarras com a "opinião pública". Seu oposto imediato, o homem de convicções, é aquele que crê estar em posse de verdades definitivas e, por isso mesmo, tem por postulado não poder ser refutado. O espírito livre, ao contrário, nunca fixa opiniões em convicções: ele impede essa fixação por constantes variações e só terá ao seu dispor probabilidades exatamente mensuradas. Assim descrito, o espírito livre é, antes de tudo, um experimentador. Nietzsche o opõe ao espírito servo. As cadeias as mais fortes que o espírito deve romper para libertar-se são as cadeias dos deveres, quer dizer, o respeito aos valores antigos e venerados. O espírito livre vai designando, assim, uma vontade de autonomia na determinação de si mesmo e de seus próprios valores, uma "vontade de vontade livre". Agora o espírito livre torna-se um experimentador curioso em face dos frutos proibidos: ele se interrogará então se não podemos inverter todos os valores: se o bem não seria o mal; se Deus não seria uma invenção; se não pode ocorrer que tudo seja falso. Sua liberdade de espírito deverá abrir-lhe a via para maneiras de pensar múltiplas e opostas, o que lhe dará o privilégio de viver a título de experiência".
"Qual é o rosto do "espírito livre", este inimigo confesso das convicções e das certezas?
Nietzsche o descreve em Humano, demasiado humano. O espírito livre é alguém dedicado ao conhecimento, que desdenha a veneração das massas e atravessa o mundo de forma tão silenciosa quanto dele sai. Sendo "inatual", o espírito livre não tem amarras com a "opinião pública". Seu oposto imediato, o homem de convicções, é aquele que crê estar em posse de verdades definitivas e, por isso mesmo, tem por postulado não poder ser refutado. O espírito livre, ao contrário, nunca fixa opiniões em convicções: ele impede essa fixação por constantes variações e só terá ao seu dispor probabilidades exatamente mensuradas. Assim descrito, o espírito livre é, antes de tudo, um experimentador. Nietzsche o opõe ao espírito servo. As cadeias as mais fortes que o espírito deve romper para libertar-se são as cadeias dos deveres, quer dizer, o respeito aos valores antigos e venerados. O espírito livre vai designando, assim, uma vontade de autonomia na determinação de si mesmo e de seus próprios valores, uma "vontade de vontade livre". Agora o espírito livre torna-se um experimentador curioso em face dos frutos proibidos: ele se interrogará então se não podemos inverter todos os valores: se o bem não seria o mal; se Deus não seria uma invenção; se não pode ocorrer que tudo seja falso. Sua liberdade de espírito deverá abrir-lhe a via para maneiras de pensar múltiplas e opostas, o que lhe dará o privilégio de viver a título de experiência".
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
Comentário sobre o Livro VIII de "A República", Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
Até o livro VII, Sócrates desenvolveu o tema da constituição ideal, aquela que permitiria a justiça na cidade. Tal cidade teria as seguintes características: as mulheres e os filhos seriam comuns, as ocupações também seriam comuns, tanto na guerra quanto na paz e os melhores na filosofia e na guerra seriam os reis. Estes seriam sustentados pela cidade, não tendo posses. De fato, tudo seria comum a todos. Cada um teria o trabalho de acordo com a sua natureza. Sendo esta a constituição ideal, resta analisar as demais, que são defeituosas. Este tema dos diferentes tipos de governo já havia sido apresentado anteriormente e é retomado para ser desenvolvido no Livro VIII.
Partindo da aristocracia, Sócrates explica como ela se transforma em timocracia, a constituição que privilegia as honras. A timocracia está entre a aristocracia e a oligarquia. O homem que corresponde a essa forma de governo tem o gosto pelas disputas, é arrogante e menos chegado às musas. É bom ouvinte, mas não é bom orador. Este tipo de homem é violento com os escravos, brando com os homens livres e bastante submisso aos governantes. Gosta do poder e das honras e pensa que as terá através de seus feitos na guerra. Sua natureza é avarenta, pois, segundo Sócrates, sua virtude não é pura por faltar-lhe a razão e a música.
A oligarquia surge principalmente por causa das riquezas. Aqueles que eram amantes das competições e das honras passam a ser amantes do lucro. Esta cidade se torna duas: a dos pobres e a dos ricos. O homem semelhante a tal forma de governo é trabalhador, parcimonioso e mesquinho.
A transição da oligarquia para democracia acontece, porque todos querem saciar o desejo de serem os mais ricos. Chegará o momento da rebelião, na qual os pobres levantar-se-ão contra os ricos e tomarão o poder. Nesta nova situação, ou seja, na democracia, não se é obrigado a governar nem a lutar. Sócrates descreve a democracia como uma forma de governo agradável sem chefes na qual os homens fariam o que quisessem: ora participando do governo, ora sendo um guerreiro, ora sendo um negociante.
Como esta forma de governo se transformou na tirania? Sócrates se refere à tirania como sendo nobre e a que mais destaca das outras; o leitor aqui poderá ficar em dúvida se esta é uma opinião genuína do filósofo ou se novamente ele usa de ironia. Na democracia, o excesso de liberdade tem como conseqüências que filhos não respeitem pais, discípulos não respeitem seus mestres. Os jovens tornam-se semelhantes aos mais velhos e passam a competir com eles. Os velhos, por sua vez, imitam os jovens para que não pareçam desagradáveis nem autoritários. O leitor aqui vai notar grande semelhança com nossos dias atuais; não é fato que hoje em dia os jovens não respeitam os mais velhos e estes, os mais velhos, tentam parecer jovens o máximo possível? A velhice parece ser desvalorizada na sociedade atual, não sendo vista como sinônimo de sabedoria e sim como sinônimo de decadência.
Sócrates irá explicar porque o excesso de liberdade leva à tirania; segundo o filósofo, agir com excesso geralmente resulta num movimento para a direção oposta; isto ocorre com os animais, com as plantas e mais ainda com as formas de governo. Sendo assim, o excesso de liberdade seria a causa da mudança para a tirania. O povo costuma ter como seu defensor um único homem; é este homem, este protetor que é a raiz de onde brota o tirano. Este protetor provocará guerras para que o povo precise de um chefe; a guerra também lhe dará pretexto para que ele elimine seus inimigos. Ele criará impostos para que os trabalhadores não tenham tempo de pensar em levantes ou revoltas. Com tais ações, ele passará a ser odiado pelo povo, e por causa disto, se cercará de guarda-costas numerosos. Para buscar guarda-costas fiéis, libertará os escravos. Os homens de bem fogem dele. No limite, esse tirano será capaz de usar de violência contra o próprio pai, ou seja, há a total inversão de valores.
Deste modo, o povo, ao fugir da escravidão cai no despotismo dos escravos, ou seja, em troca da liberdade sem limite, recebe a escravidão mais dura e amarga: a submissão aos escravos.Fica claro para o leitor neste momento, que era com ironia que Sócrates se referia à nobre tirania que se destacava de todas as outras. Obviamente, esta forma de governo se destaca negativamente e não positivamente, como se poderia interpretar inicialmente.
Partindo da aristocracia, Sócrates explica como ela se transforma em timocracia, a constituição que privilegia as honras. A timocracia está entre a aristocracia e a oligarquia. O homem que corresponde a essa forma de governo tem o gosto pelas disputas, é arrogante e menos chegado às musas. É bom ouvinte, mas não é bom orador. Este tipo de homem é violento com os escravos, brando com os homens livres e bastante submisso aos governantes. Gosta do poder e das honras e pensa que as terá através de seus feitos na guerra. Sua natureza é avarenta, pois, segundo Sócrates, sua virtude não é pura por faltar-lhe a razão e a música.
A oligarquia surge principalmente por causa das riquezas. Aqueles que eram amantes das competições e das honras passam a ser amantes do lucro. Esta cidade se torna duas: a dos pobres e a dos ricos. O homem semelhante a tal forma de governo é trabalhador, parcimonioso e mesquinho.
A transição da oligarquia para democracia acontece, porque todos querem saciar o desejo de serem os mais ricos. Chegará o momento da rebelião, na qual os pobres levantar-se-ão contra os ricos e tomarão o poder. Nesta nova situação, ou seja, na democracia, não se é obrigado a governar nem a lutar. Sócrates descreve a democracia como uma forma de governo agradável sem chefes na qual os homens fariam o que quisessem: ora participando do governo, ora sendo um guerreiro, ora sendo um negociante.
Como esta forma de governo se transformou na tirania? Sócrates se refere à tirania como sendo nobre e a que mais destaca das outras; o leitor aqui poderá ficar em dúvida se esta é uma opinião genuína do filósofo ou se novamente ele usa de ironia. Na democracia, o excesso de liberdade tem como conseqüências que filhos não respeitem pais, discípulos não respeitem seus mestres. Os jovens tornam-se semelhantes aos mais velhos e passam a competir com eles. Os velhos, por sua vez, imitam os jovens para que não pareçam desagradáveis nem autoritários. O leitor aqui vai notar grande semelhança com nossos dias atuais; não é fato que hoje em dia os jovens não respeitam os mais velhos e estes, os mais velhos, tentam parecer jovens o máximo possível? A velhice parece ser desvalorizada na sociedade atual, não sendo vista como sinônimo de sabedoria e sim como sinônimo de decadência.
Sócrates irá explicar porque o excesso de liberdade leva à tirania; segundo o filósofo, agir com excesso geralmente resulta num movimento para a direção oposta; isto ocorre com os animais, com as plantas e mais ainda com as formas de governo. Sendo assim, o excesso de liberdade seria a causa da mudança para a tirania. O povo costuma ter como seu defensor um único homem; é este homem, este protetor que é a raiz de onde brota o tirano. Este protetor provocará guerras para que o povo precise de um chefe; a guerra também lhe dará pretexto para que ele elimine seus inimigos. Ele criará impostos para que os trabalhadores não tenham tempo de pensar em levantes ou revoltas. Com tais ações, ele passará a ser odiado pelo povo, e por causa disto, se cercará de guarda-costas numerosos. Para buscar guarda-costas fiéis, libertará os escravos. Os homens de bem fogem dele. No limite, esse tirano será capaz de usar de violência contra o próprio pai, ou seja, há a total inversão de valores.
Deste modo, o povo, ao fugir da escravidão cai no despotismo dos escravos, ou seja, em troca da liberdade sem limite, recebe a escravidão mais dura e amarga: a submissão aos escravos.Fica claro para o leitor neste momento, que era com ironia que Sócrates se referia à nobre tirania que se destacava de todas as outras. Obviamente, esta forma de governo se destaca negativamente e não positivamente, como se poderia interpretar inicialmente.
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
É só uma hipótese...
Bem, vou fazer uma pausa em Platão para discutir uma idéia que me surgiu em meio a uma aula de Estética (Estética, disciplina filosófica e não estética facial rsrsrs).
Estávamos discutindo sobre a obra de arte e a mudança que aconteceu desde o modernismo até a contemporaneidade. O modernismo tinha como proposta "estetizar" a vida no sentido de tornar a obra de arte acessível a toda a população; de fato o projeto moderno se concretizou... o "design" cumpriu esse papel: hoje em dia a "obra de arte" na forma de design pode ser comprada nas lojas de roupas, acessórios, móveis, casas e até nas embalagens de produtos à venda nos supermercados. Praticamente tudo tem design. Mas qual a conseqüência disto? A obra de arte perdeu sua substância, perdeu sua assinatura ou autoria. Quem é o autor daquela embalagem bonita de iogurte? Ninguém sabe. Não que a embalagem seja em si uma obra de arte, mas há uma intenção estética artística no desenho daquela embalagem.
Quanto à substância, a obra de arte tinha uma intenção, tinha uma proposta em geral descrita num manifesto. O design tem tão somente a proposta de ser agradável aos sentidos...
Agora... indo mais no âmago ainda da questão estética: alguém já parou para pensar por que adoramos determinados objetos? Por que desejamos ter determinada roupa ou carro? Alguns poderiam afirmar que desejamos ter uma roupa para nos proteger do frio e um carro para facilitar nossa locomoção. Certo, mas alguém me explica por que queremos comprar um enfeite de mesa ou de parede que não tem nenhuma utilidade a não ser "enfeitar"(ou enfeiar rsrsrs) o ambiente? Bem, meus leitores assíduos já sabem que minhas reflexões freqüentemente me levam ao tempo das cavernas...
Antes disso, convido o leitor a voltar seus olhos para o mundo animal: os adornos são usados por diversas espécies nos rituais de acasalamento. Por exemplo, certas espécies de pássaros buscam materiais na natureza tais como pedrinhas, plantas, sementes para embelezar seus territórios e atrair um parceiro. Ora... nosso amigo (ou amiga) das cavernas também devia ter sua estratégia de embelezamento para atrair (e manter) um parceiro... parte dessa estratégia devia ser manter em seu poder objetos esteticamente atraentes, ornamentos... Alguns afirmarão que tal estratégia ainda hoje se faz presente nos salões de beleza, spas, clínicas de cirurgia plástica e por aí vai - bem menos rudimentar evidentemente. Mas como é que o objeto artístico saiu (se é que saiu) desta motivação tão basal que é a reprodução da espécie, para ganhar ares de sofisticação social, capitalista, multimídia?
Explico: hoje em dia é como se a produção em massa de produtos de design, esvaziassem o sentido original da posse de tais objetos; antes, basal de manutenção da espécie mesmo e hoje, superficial da imagem e da aparência... mas no fundo o que queremos quando desejamos um objeto de arte? Qual a motivação mais profunda desse desejo? A minha hipótese é que no fundo, no fundo, a nossa motivação ainda é basal; sem saber conscientemente, sem buscar isso intencionalmente... os nossos genes nos impelem a atrair o olhar do outro.
Estávamos discutindo sobre a obra de arte e a mudança que aconteceu desde o modernismo até a contemporaneidade. O modernismo tinha como proposta "estetizar" a vida no sentido de tornar a obra de arte acessível a toda a população; de fato o projeto moderno se concretizou... o "design" cumpriu esse papel: hoje em dia a "obra de arte" na forma de design pode ser comprada nas lojas de roupas, acessórios, móveis, casas e até nas embalagens de produtos à venda nos supermercados. Praticamente tudo tem design. Mas qual a conseqüência disto? A obra de arte perdeu sua substância, perdeu sua assinatura ou autoria. Quem é o autor daquela embalagem bonita de iogurte? Ninguém sabe. Não que a embalagem seja em si uma obra de arte, mas há uma intenção estética artística no desenho daquela embalagem.
Quanto à substância, a obra de arte tinha uma intenção, tinha uma proposta em geral descrita num manifesto. O design tem tão somente a proposta de ser agradável aos sentidos...
Agora... indo mais no âmago ainda da questão estética: alguém já parou para pensar por que adoramos determinados objetos? Por que desejamos ter determinada roupa ou carro? Alguns poderiam afirmar que desejamos ter uma roupa para nos proteger do frio e um carro para facilitar nossa locomoção. Certo, mas alguém me explica por que queremos comprar um enfeite de mesa ou de parede que não tem nenhuma utilidade a não ser "enfeitar"(ou enfeiar rsrsrs) o ambiente? Bem, meus leitores assíduos já sabem que minhas reflexões freqüentemente me levam ao tempo das cavernas...
Antes disso, convido o leitor a voltar seus olhos para o mundo animal: os adornos são usados por diversas espécies nos rituais de acasalamento. Por exemplo, certas espécies de pássaros buscam materiais na natureza tais como pedrinhas, plantas, sementes para embelezar seus territórios e atrair um parceiro. Ora... nosso amigo (ou amiga) das cavernas também devia ter sua estratégia de embelezamento para atrair (e manter) um parceiro... parte dessa estratégia devia ser manter em seu poder objetos esteticamente atraentes, ornamentos... Alguns afirmarão que tal estratégia ainda hoje se faz presente nos salões de beleza, spas, clínicas de cirurgia plástica e por aí vai - bem menos rudimentar evidentemente. Mas como é que o objeto artístico saiu (se é que saiu) desta motivação tão basal que é a reprodução da espécie, para ganhar ares de sofisticação social, capitalista, multimídia?
Explico: hoje em dia é como se a produção em massa de produtos de design, esvaziassem o sentido original da posse de tais objetos; antes, basal de manutenção da espécie mesmo e hoje, superficial da imagem e da aparência... mas no fundo o que queremos quando desejamos um objeto de arte? Qual a motivação mais profunda desse desejo? A minha hipótese é que no fundo, no fundo, a nossa motivação ainda é basal; sem saber conscientemente, sem buscar isso intencionalmente... os nossos genes nos impelem a atrair o olhar do outro.
domingo, 31 de agosto de 2008
A República, Livro VII - o Mito da Caverna
Comentário sobre o Livro VII de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
O início do Livro VII trata, dentre outros assuntos, do mito da caverna, uma passagem bastante comentada desta obra. A hipótese proposta por Sócrates é que os homens estão numa caverna, olhando para a parede dela, de costas para uma fogueira que projeta sombras. Os homens estão presos e não podem olhar para trás, de modo que tudo o que conhecem são as sombras projetadas. Se um homem for levado para fora da caverna, terá seus olhos feridos pela claridade se olhar diretamente para as coisas imediatamente; assim ele terá que vagarosamente acostumar seus olhos, primeiro olhando ainda as sombras projetadas fora da caverna, depois os reflexos das coisas na água, conseguindo então, um pouco mais tarde, contemplar os astros à noite e, por fim, o sol e a luz do sol. Ou seja, só depois de acostumar seus olhos, o homem poderá ver as coisas na sua plenitude.
Este mesmo homem, ao voltar para a caverna, teria que acostumar novamente seus olhos às sombras. Nesse período de adaptação, seria menos capaz do que os outros que nunca saíram de lá; se este homem tentasse levar qualquer outro para fora da caverna, provavelmente seria morto, pois na concepção dos que nunca saíram da caverna, o “sair da caverna” lesa os olhos.
Sócrates pede que esta imagem seja aplicada a tudo o que veio antes. No que ele chama de mundo cognoscível, a idéia do bem é a mais difícil de ver e vem por último. No entanto, se é vista, impõe-se como a causa de tudo o que é correto e belo. No mundo visível, ela gera a luz; no mundo inteligível é ela que dá a verdade e a inteligência.
É natural que aqueles que chegaram a conhecer a idéia do bem não queriam voltar a exercer as atividades dos homens, mas no caso do filósofo guardião, como foi a própria cidade que o formou, ou seja, que deu toda a condição para que ele enxergasse a verdade, ele terá que voltar para as questões dos homens, pois é justo que ele devolva para a cidade o que ela investiu no filósofo guardião.
Sócrates volta, portanto, ao tema com o qual iniciou o livro VI afirmando que os filósofos deveriam ser os governantes já que são “filósofos os capazes de chegar àquilo que, do mesmo ponto de vista, é sempre o mesmo”. E sendo assim, são os capazes de salvaguardar as leis e as instituições da cidade.
Cabem aos fundadores da cidade ideal fazer com que as melhores naturezas caminhem para o alto e aprendam a ver o bem. Mas não devem permitir que elas permaneçam lá. Estas pessoas deverão buscar o governo como algo que não podem recusar – agora o leitor entende melhor porque Sócrates afirmava anteriormente que o melhor governante é aquele que não quer o governo, mas não tem como recusá-lo; tendo o filósofo conhecido o bem, enxergado a luz e entendido a verdade, ficaria, por sua vontade, neste plano elevado, mas sendo preparado pela própria cidade para ser seu guardião, vê-se obrigado a voltar para o plano dos homens.
O livro VII ainda fala da educação para os cidadãos, mas paremos por aqui para explorarmos um pouco mais o mito da caverna.
Apresento ao leitor, para referência, um trecho do livro Platão e Aristóteles, O fascínio da Filosofia de Marco Zingano (Imortais da Ciência, Coordenação Marcelo Gleiser, Odysseus Editora, 2005): "aquele que acredita somente no que vê e sente é como um homem acorrentado no fundo de uma caverna que assiste ao espetáculo das sombras de objetos que lhe são projetadas em seus muros. Sem ver de onde vem essa projeção e tomando as sombras pelas próprias coisas, não suspeita que os objetos, os verdadeiros, se encontram fora da caverna. Se, porém, conseguir livrar-se de seus grilhões, verá então que não passavam de sombras, e tentará, com grande esforço, galgar as entranhas da caverna para sair dela; lá fora, cegado pela luminosidade que desconhecia inteiramente, terá primeiro de acostumar-se com ela para enfim um dia mirar de frente o Sol, fonte de toda luz. O Sol simboliza a Idéia suprema; a saída da caverna designa o abandono do mundo das sensações em proveito unicamente do pensamento; os grilhões, nossa obstinação com o mundo da experiência."
Ainda para ilustrar o mito da caverna, eu trago aqui para o texto um filme que eu acho genial em vários aspectos: Matrix. Após o trauma da morte, Neo renasce e passa e enxergar o mundo em símbolos, ou seja, ele passa a enxergar a matrix como ela é e não mais como ela aparenta ser. Ao morrer, ele consegue finalmente se livrar dos grilhões que o prendiam à visão tradicional do mundo, à visão das sombras, das aparências. Ao renascer, ele sai da caverna e enxerga a verdade - foi dolorido conseguir ver a verdade (essa dor está representada na passagem pela morte), mas o seu renascimento é pleno e luminoso, quando toda a verdade se apresenta a seus olhos... Quem quer ficar na caverna e quem se arrisca a olhar diretamente para o Sol?
O início do Livro VII trata, dentre outros assuntos, do mito da caverna, uma passagem bastante comentada desta obra. A hipótese proposta por Sócrates é que os homens estão numa caverna, olhando para a parede dela, de costas para uma fogueira que projeta sombras. Os homens estão presos e não podem olhar para trás, de modo que tudo o que conhecem são as sombras projetadas. Se um homem for levado para fora da caverna, terá seus olhos feridos pela claridade se olhar diretamente para as coisas imediatamente; assim ele terá que vagarosamente acostumar seus olhos, primeiro olhando ainda as sombras projetadas fora da caverna, depois os reflexos das coisas na água, conseguindo então, um pouco mais tarde, contemplar os astros à noite e, por fim, o sol e a luz do sol. Ou seja, só depois de acostumar seus olhos, o homem poderá ver as coisas na sua plenitude.
Este mesmo homem, ao voltar para a caverna, teria que acostumar novamente seus olhos às sombras. Nesse período de adaptação, seria menos capaz do que os outros que nunca saíram de lá; se este homem tentasse levar qualquer outro para fora da caverna, provavelmente seria morto, pois na concepção dos que nunca saíram da caverna, o “sair da caverna” lesa os olhos.
Sócrates pede que esta imagem seja aplicada a tudo o que veio antes. No que ele chama de mundo cognoscível, a idéia do bem é a mais difícil de ver e vem por último. No entanto, se é vista, impõe-se como a causa de tudo o que é correto e belo. No mundo visível, ela gera a luz; no mundo inteligível é ela que dá a verdade e a inteligência.
É natural que aqueles que chegaram a conhecer a idéia do bem não queriam voltar a exercer as atividades dos homens, mas no caso do filósofo guardião, como foi a própria cidade que o formou, ou seja, que deu toda a condição para que ele enxergasse a verdade, ele terá que voltar para as questões dos homens, pois é justo que ele devolva para a cidade o que ela investiu no filósofo guardião.
Sócrates volta, portanto, ao tema com o qual iniciou o livro VI afirmando que os filósofos deveriam ser os governantes já que são “filósofos os capazes de chegar àquilo que, do mesmo ponto de vista, é sempre o mesmo”. E sendo assim, são os capazes de salvaguardar as leis e as instituições da cidade.
Cabem aos fundadores da cidade ideal fazer com que as melhores naturezas caminhem para o alto e aprendam a ver o bem. Mas não devem permitir que elas permaneçam lá. Estas pessoas deverão buscar o governo como algo que não podem recusar – agora o leitor entende melhor porque Sócrates afirmava anteriormente que o melhor governante é aquele que não quer o governo, mas não tem como recusá-lo; tendo o filósofo conhecido o bem, enxergado a luz e entendido a verdade, ficaria, por sua vontade, neste plano elevado, mas sendo preparado pela própria cidade para ser seu guardião, vê-se obrigado a voltar para o plano dos homens.
O livro VII ainda fala da educação para os cidadãos, mas paremos por aqui para explorarmos um pouco mais o mito da caverna.
Apresento ao leitor, para referência, um trecho do livro Platão e Aristóteles, O fascínio da Filosofia de Marco Zingano (Imortais da Ciência, Coordenação Marcelo Gleiser, Odysseus Editora, 2005): "aquele que acredita somente no que vê e sente é como um homem acorrentado no fundo de uma caverna que assiste ao espetáculo das sombras de objetos que lhe são projetadas em seus muros. Sem ver de onde vem essa projeção e tomando as sombras pelas próprias coisas, não suspeita que os objetos, os verdadeiros, se encontram fora da caverna. Se, porém, conseguir livrar-se de seus grilhões, verá então que não passavam de sombras, e tentará, com grande esforço, galgar as entranhas da caverna para sair dela; lá fora, cegado pela luminosidade que desconhecia inteiramente, terá primeiro de acostumar-se com ela para enfim um dia mirar de frente o Sol, fonte de toda luz. O Sol simboliza a Idéia suprema; a saída da caverna designa o abandono do mundo das sensações em proveito unicamente do pensamento; os grilhões, nossa obstinação com o mundo da experiência."
Ainda para ilustrar o mito da caverna, eu trago aqui para o texto um filme que eu acho genial em vários aspectos: Matrix. Após o trauma da morte, Neo renasce e passa e enxergar o mundo em símbolos, ou seja, ele passa a enxergar a matrix como ela é e não mais como ela aparenta ser. Ao morrer, ele consegue finalmente se livrar dos grilhões que o prendiam à visão tradicional do mundo, à visão das sombras, das aparências. Ao renascer, ele sai da caverna e enxerga a verdade - foi dolorido conseguir ver a verdade (essa dor está representada na passagem pela morte), mas o seu renascimento é pleno e luminoso, quando toda a verdade se apresenta a seus olhos... Quem quer ficar na caverna e quem se arrisca a olhar diretamente para o Sol?
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
Livro VI de "A República" de Platão
Comentário sobre o Livro VI de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
No final do livro V, Sócrates havia dito que os amigos do conhecimento são os filósofos, os que acolhem o próprio ser. São eles que têm condição de ver o justo em si e não apenas as coisas justas.
Sócrates inicia o livro VI afirmando que os filósofos deveriam ser os governantes já que são “filósofos os capazes de chegar àquilo que, do mesmo ponto de vista, é sempre o mesmo”. E sendo assim, são os capazes de salvaguardar as leis e as instituições da cidade.
A natureza destes homens é ter um amor pela ciência (pela verdade) que revela a essência do que é realmente e que não se corrompe. Eles recusam a mentira e sentem ódio por ela – “quem realmente ama a ciência tem qualidades naturais para a busca do ser e não fica na multiplicidade daquilo que parece ser, mas avança na busca, não perde a garra, nem desiste de seu amor, antes de atingir a natureza de cada coisa...”.
Ao falar sobre a alma filosófica, Sócrates afirma que ela é mansa e justa desde a infância, tem facilidade para aprender e é capaz de reter conhecimento.
Ao resumir as qualidades do filósofo, temos: “...dotado de boa memória, de facilidade para aprender, de magnanimidade, de graça, e .... (tendo) afinidade e parentesco com a verdade, a justiça, a coragem e a temperança”.
Após definir as qualidades, Sócrates lança a pergunta: por que a maioria é de homens maus? Para responder a essa pergunta devemos observar a corrupção da natureza do filósofo. O estranho é que cada uma das qualidades naturais destrói a alma que as possue. Tudo o que é considerado bom afasta a alma da filosofia: beleza, riqueza, parentesco, força física. Ora, uma alma medíocre não é capaz de grandes feitos, mas uma alma vigorosa corrompida por uma educação excepcionalmente ruim será capaz das piores injustiças.
Pausa para reflexão...
Um ponto interessante é o modo com o governante seria escolhido: segundo Sócrates, todo aquele que precisa ser governado deveria ir às portas do governante e não o governante pedir aos governados que os deixe governar, uma vez que são os governados que precisam do governante e não o contrário. Ele usa a analogia do doente procurando um médico: se eu estou doente, sou eu quem procura um médico e não o contrário, certo? Que diferença da corrida pelo poder que vemos no nosso cotidiano! Ainda mais em época de eleições... o leitor já imaginou como seria se o povo corresse atrás de um governante e implorasse para que ele governasse? E ele fosse muito reticente ao aceitar porque sabe da responsabilidade e do peso que isso significa? Mais uma pausa para reflexão ...
Com relação às constituições, Sócrates diz que nenhuma das atuais (atual = Grécia antiga) é conveniente à filosofia. Idealmente, a cidade deveria tratar a filosofia de modo que não perecesse, abordando seu estudo de modo oposto ao que estava sendo usado no momento. A proposta de Sócrates é: “quando são mocinhos e crianças, devem ter trato com uma educação e uma filosofia apropriada aos jovens e, no momento em que estão crescendo e se tornam homens, devem cuidar bem de seus corpos, conseguindo assim uma ajuda para a filosofia. Com o avanço da idade, no momento em que a alma começa a atingir seu desenvolvimento pleno, devem intensificar os exercícios relacionados com ela. E quando perdem a força física e ficam fora da política e das campanhas bélicas, então, como os animais sagrados já podem pastar em liberdade e nada fazer exceto o que para eles seja um passatempo, se é que se quer que vivam felizes, e depois de sua morte, o destino deles lá corresponda à vida vivida aqui”. Aqui é curiosa a comparação com os animais sagrados e, conforme explicado na nota 15 do Livro VI, a alusão ao mito da reencarnação das almas.
O livro VI se encerra com a afirmação de que a inteligência corresponde à parte mais elevada da alma, o pensamento corresponde à segunda parte da alma, crença à terceira e verossimilhança à ultima e “quanto mais os objetos participarem da verdade, mais clareza terão”.
No final do livro V, Sócrates havia dito que os amigos do conhecimento são os filósofos, os que acolhem o próprio ser. São eles que têm condição de ver o justo em si e não apenas as coisas justas.
Sócrates inicia o livro VI afirmando que os filósofos deveriam ser os governantes já que são “filósofos os capazes de chegar àquilo que, do mesmo ponto de vista, é sempre o mesmo”. E sendo assim, são os capazes de salvaguardar as leis e as instituições da cidade.
A natureza destes homens é ter um amor pela ciência (pela verdade) que revela a essência do que é realmente e que não se corrompe. Eles recusam a mentira e sentem ódio por ela – “quem realmente ama a ciência tem qualidades naturais para a busca do ser e não fica na multiplicidade daquilo que parece ser, mas avança na busca, não perde a garra, nem desiste de seu amor, antes de atingir a natureza de cada coisa...”.
Ao falar sobre a alma filosófica, Sócrates afirma que ela é mansa e justa desde a infância, tem facilidade para aprender e é capaz de reter conhecimento.
Ao resumir as qualidades do filósofo, temos: “...dotado de boa memória, de facilidade para aprender, de magnanimidade, de graça, e .... (tendo) afinidade e parentesco com a verdade, a justiça, a coragem e a temperança”.
Após definir as qualidades, Sócrates lança a pergunta: por que a maioria é de homens maus? Para responder a essa pergunta devemos observar a corrupção da natureza do filósofo. O estranho é que cada uma das qualidades naturais destrói a alma que as possue. Tudo o que é considerado bom afasta a alma da filosofia: beleza, riqueza, parentesco, força física. Ora, uma alma medíocre não é capaz de grandes feitos, mas uma alma vigorosa corrompida por uma educação excepcionalmente ruim será capaz das piores injustiças.
Pausa para reflexão...
Um ponto interessante é o modo com o governante seria escolhido: segundo Sócrates, todo aquele que precisa ser governado deveria ir às portas do governante e não o governante pedir aos governados que os deixe governar, uma vez que são os governados que precisam do governante e não o contrário. Ele usa a analogia do doente procurando um médico: se eu estou doente, sou eu quem procura um médico e não o contrário, certo? Que diferença da corrida pelo poder que vemos no nosso cotidiano! Ainda mais em época de eleições... o leitor já imaginou como seria se o povo corresse atrás de um governante e implorasse para que ele governasse? E ele fosse muito reticente ao aceitar porque sabe da responsabilidade e do peso que isso significa? Mais uma pausa para reflexão ...
Com relação às constituições, Sócrates diz que nenhuma das atuais (atual = Grécia antiga) é conveniente à filosofia. Idealmente, a cidade deveria tratar a filosofia de modo que não perecesse, abordando seu estudo de modo oposto ao que estava sendo usado no momento. A proposta de Sócrates é: “quando são mocinhos e crianças, devem ter trato com uma educação e uma filosofia apropriada aos jovens e, no momento em que estão crescendo e se tornam homens, devem cuidar bem de seus corpos, conseguindo assim uma ajuda para a filosofia. Com o avanço da idade, no momento em que a alma começa a atingir seu desenvolvimento pleno, devem intensificar os exercícios relacionados com ela. E quando perdem a força física e ficam fora da política e das campanhas bélicas, então, como os animais sagrados já podem pastar em liberdade e nada fazer exceto o que para eles seja um passatempo, se é que se quer que vivam felizes, e depois de sua morte, o destino deles lá corresponda à vida vivida aqui”. Aqui é curiosa a comparação com os animais sagrados e, conforme explicado na nota 15 do Livro VI, a alusão ao mito da reencarnação das almas.
O livro VI se encerra com a afirmação de que a inteligência corresponde à parte mais elevada da alma, o pensamento corresponde à segunda parte da alma, crença à terceira e verossimilhança à ultima e “quanto mais os objetos participarem da verdade, mais clareza terão”.
domingo, 3 de agosto de 2008
Livro V de "A República" de Platão
Comentário sobre o Livro V de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
No livro IV, Sócrates definiu: as virtudes da cidade e na alma; o quanto a cidade deveria crescer; sobre o que legislar; como seriam as guerras e terminou introduzindo uma das formas de governo à qual ele nomeou monarquia, no caso em que há um governante e aristocracia, quando há vários.
Agora que ele definiu o papel do homem na cidade, ele se volta, no livro V, para o papel da mulher. É muito interessante a abordagem dele ao atribuir às mulheres o mesmo papel do homem. Segundo ele, as mulheres também devem aprender música e ginástica. Elas devem participar das guerras, sendo tratadas com as mesmas regras. Ele reconhece que essa proposição é vista como ridícula aos olhos dos costumes, mas é assim que deve ser (ele diz isto porque na Grécia antiga, as mulheres não eram cidadãs... na polis existiam os cidadãos, as mulheres e os escravos) . Cada um deve exercer a função que lhe cabe por natureza e a mulher não tem natureza diferente do homem: “... entre as ocupações da administração da cidade, nenhuma cabe à mulher porque ela é mulher, nem ao homem porque ele é homem, mas as qualidades naturais estão igualmente disseminadas nos dois sexos e, por natureza, a mulher participa de todas as ocupações e de todas também o homem, mas em todas elas a mulher é mais fraca que o homem.”. Por serem mais fracas que o homem, os trabalhos mais leves serão atribuídos às mulheres, mais elas participarão das guerras e das outras ações de guarda da cidade. É intrigante esta fala de Sócrates, pois nos livros anteriores, ele colocou as mulheres na mesma categoria das crianças e dos servos, ou seja, num nível abaixo dos homens; talvez, quando se trate de defender a cidade, todas as forças devam ser usadas, não importando tanto em que nível estão. Realmente recentemente li num artigo da revista "História Viva" que em tempos de guerra, os gregos libertavam os seus escravos para que eles lutassem e se aqueles que morriam lutando eram enterrados com honra e glória.
Seguindo, Sócrates aborda o assunto das famílias, como elas deveriam ser constituídas; ao ler sua proposta fiquei muito surpresa, foi como se estivesse lendo ficção científica. As idéias de Sócrates fizeram-me lembrar dos livros 1984 e Admirável Mundo Novo, nos quais a sociedade é controlada pelo governante de forma parecida.
Falando dos guardiões, ele propõe uma dissolução da família tradicional e em seu lugar, que todas as mulheres sejam comuns a todos os homens e que os filhos sejam comuns também, de modo que nenhum filho reconheça os pais e nem os pais reconheçam seus filhos. São os governantes que decidem o número de casamentos a fim de manter a população estável.
Aos corajosos na guerra, será permitido deitarem-se com mais mulheres, para que nasçam mais filhos corajosos. Vemos aqui um conceito de herança de características, ou seja, na visão de Platão, as características comportamentais eram passadas de pai para filho.
Nessa “família expandida”, não são os pais que cuidam dos filhos; eles são entregues às autoridades: “Os filhos dos bons, penso, esses encarregados pegarão e levarão para o redil, para junto de amas que moram aparte num lugar da cidade; as dos menos dotados e também as de uns e de outros, caso apresentem algum defeito, eles esconderão num local secreto e ignorado, como convém”.
Isto deve ser feito para “manter a raça dos guardiões pura”. No texto observei também em algumas ocasiões a comparação com animais, neste caso, há a comparação com cães de caça, pássaros de boa raça e cavalos. Os donos de tais animais se empenham para que somente os melhores tenham crias, de igual maneira, segundo Sócrates, assim deverão fazer também os governantes. E se para isso for necessário usar de mentira e fraude, que assim seja, pois “à guisa de remédio, coisas assim são úteis”. Sócrates já havia afirmado que o governante poderia mentir para o bem da cidade; aqui essa “ferramenta” é retomada com a função específica de controlar a quantidade e a qualidade dos cidadãos que nascem. Isso é bastante espantoso, para nós que vivemos hoje em dia – é como se a sobrevivência da cidade viesse acima de tudo, não importando os meios: largar os doentes à morte, mentir e fraudar, abandonar as crianças mais fracas, matar de fome as crianças ilegítimas. Parece que tudo se justifica para manter a cidade saudável, na concepção do filósofo.
Ele explica o porquê deste controle e do modelo de sociedade sem famílias: isso uniria toda a cidade numa só alegria ou numa só dor, uma vez que todos seriam irmãos, irmãs, pais e filhos.
Está faltando, a meu ver, levar em conta os sentimentos de afeto entre homens e mulheres, pais e filhos. Isso não pode ser extirpado da cidade, uma vez que é natural para nós sentir mais afeto pelos pares e descendentes; não acredito que os governantes conseguiriam controlar esse impulso natural com mentiras. Haveria revoltas, descontentamentos diversos e a mentira seria usada pelos cidadãos também para conseguirem o que mandam seus afetos. A cidade se degradaria.
Ainda no livro V, Sócrates afirma que os gregos não deveriam guerrear contra gregos, somente contra bárbaros, uma vez que as guerras internas enfraquecem as cidades, ficando mais suscetíveis a invasões externas. Ele sugere que se houver diferenças entre cidades gregas, que a vencedora tome a colheita da vencida – esta seria uma atitude moderada que permitiria que os cidadãos de ambos lugares, pudessem se reconciliar um dia. Aliás, Sócrates sugere que sejam feitos planos de reconciliação para que as cidades gregas não fiquem sempre em guerra.
Quando questionado se tal constituição poderia existir, Sócrates responde que não era intenção dele demonstrar que esse modelo poderia existir, no entanto, propõe que se for possível descobrir como uma cidade seja administrada de um modo que mais se aproxime do modelo, então que se conclua que pode existir a cidade perfeita. Depois disso ele irá analisar o que vai mal nas cidades que não possuem tal governo e quais mudanças, em menor número possível, permitiriam que tal cidade chegasse à constituição proposta por ele.
Por fim, Sócrates irá demonstrar que há conhecimento e opinião e que são coisas distintas. Os amigos do conhecimento são os filósofos, os que acolhem o próprio ser. São eles que têm condição de ver o justo em si e não apenas as coisas justas.
No livro IV, Sócrates definiu: as virtudes da cidade e na alma; o quanto a cidade deveria crescer; sobre o que legislar; como seriam as guerras e terminou introduzindo uma das formas de governo à qual ele nomeou monarquia, no caso em que há um governante e aristocracia, quando há vários.
Agora que ele definiu o papel do homem na cidade, ele se volta, no livro V, para o papel da mulher. É muito interessante a abordagem dele ao atribuir às mulheres o mesmo papel do homem. Segundo ele, as mulheres também devem aprender música e ginástica. Elas devem participar das guerras, sendo tratadas com as mesmas regras. Ele reconhece que essa proposição é vista como ridícula aos olhos dos costumes, mas é assim que deve ser (ele diz isto porque na Grécia antiga, as mulheres não eram cidadãs... na polis existiam os cidadãos, as mulheres e os escravos) . Cada um deve exercer a função que lhe cabe por natureza e a mulher não tem natureza diferente do homem: “... entre as ocupações da administração da cidade, nenhuma cabe à mulher porque ela é mulher, nem ao homem porque ele é homem, mas as qualidades naturais estão igualmente disseminadas nos dois sexos e, por natureza, a mulher participa de todas as ocupações e de todas também o homem, mas em todas elas a mulher é mais fraca que o homem.”. Por serem mais fracas que o homem, os trabalhos mais leves serão atribuídos às mulheres, mais elas participarão das guerras e das outras ações de guarda da cidade. É intrigante esta fala de Sócrates, pois nos livros anteriores, ele colocou as mulheres na mesma categoria das crianças e dos servos, ou seja, num nível abaixo dos homens; talvez, quando se trate de defender a cidade, todas as forças devam ser usadas, não importando tanto em que nível estão. Realmente recentemente li num artigo da revista "História Viva" que em tempos de guerra, os gregos libertavam os seus escravos para que eles lutassem e se aqueles que morriam lutando eram enterrados com honra e glória.
Seguindo, Sócrates aborda o assunto das famílias, como elas deveriam ser constituídas; ao ler sua proposta fiquei muito surpresa, foi como se estivesse lendo ficção científica. As idéias de Sócrates fizeram-me lembrar dos livros 1984 e Admirável Mundo Novo, nos quais a sociedade é controlada pelo governante de forma parecida.
Falando dos guardiões, ele propõe uma dissolução da família tradicional e em seu lugar, que todas as mulheres sejam comuns a todos os homens e que os filhos sejam comuns também, de modo que nenhum filho reconheça os pais e nem os pais reconheçam seus filhos. São os governantes que decidem o número de casamentos a fim de manter a população estável.
Aos corajosos na guerra, será permitido deitarem-se com mais mulheres, para que nasçam mais filhos corajosos. Vemos aqui um conceito de herança de características, ou seja, na visão de Platão, as características comportamentais eram passadas de pai para filho.
Nessa “família expandida”, não são os pais que cuidam dos filhos; eles são entregues às autoridades: “Os filhos dos bons, penso, esses encarregados pegarão e levarão para o redil, para junto de amas que moram aparte num lugar da cidade; as dos menos dotados e também as de uns e de outros, caso apresentem algum defeito, eles esconderão num local secreto e ignorado, como convém”.
Isto deve ser feito para “manter a raça dos guardiões pura”. No texto observei também em algumas ocasiões a comparação com animais, neste caso, há a comparação com cães de caça, pássaros de boa raça e cavalos. Os donos de tais animais se empenham para que somente os melhores tenham crias, de igual maneira, segundo Sócrates, assim deverão fazer também os governantes. E se para isso for necessário usar de mentira e fraude, que assim seja, pois “à guisa de remédio, coisas assim são úteis”. Sócrates já havia afirmado que o governante poderia mentir para o bem da cidade; aqui essa “ferramenta” é retomada com a função específica de controlar a quantidade e a qualidade dos cidadãos que nascem. Isso é bastante espantoso, para nós que vivemos hoje em dia – é como se a sobrevivência da cidade viesse acima de tudo, não importando os meios: largar os doentes à morte, mentir e fraudar, abandonar as crianças mais fracas, matar de fome as crianças ilegítimas. Parece que tudo se justifica para manter a cidade saudável, na concepção do filósofo.
Ele explica o porquê deste controle e do modelo de sociedade sem famílias: isso uniria toda a cidade numa só alegria ou numa só dor, uma vez que todos seriam irmãos, irmãs, pais e filhos.
Está faltando, a meu ver, levar em conta os sentimentos de afeto entre homens e mulheres, pais e filhos. Isso não pode ser extirpado da cidade, uma vez que é natural para nós sentir mais afeto pelos pares e descendentes; não acredito que os governantes conseguiriam controlar esse impulso natural com mentiras. Haveria revoltas, descontentamentos diversos e a mentira seria usada pelos cidadãos também para conseguirem o que mandam seus afetos. A cidade se degradaria.
Ainda no livro V, Sócrates afirma que os gregos não deveriam guerrear contra gregos, somente contra bárbaros, uma vez que as guerras internas enfraquecem as cidades, ficando mais suscetíveis a invasões externas. Ele sugere que se houver diferenças entre cidades gregas, que a vencedora tome a colheita da vencida – esta seria uma atitude moderada que permitiria que os cidadãos de ambos lugares, pudessem se reconciliar um dia. Aliás, Sócrates sugere que sejam feitos planos de reconciliação para que as cidades gregas não fiquem sempre em guerra.
Quando questionado se tal constituição poderia existir, Sócrates responde que não era intenção dele demonstrar que esse modelo poderia existir, no entanto, propõe que se for possível descobrir como uma cidade seja administrada de um modo que mais se aproxime do modelo, então que se conclua que pode existir a cidade perfeita. Depois disso ele irá analisar o que vai mal nas cidades que não possuem tal governo e quais mudanças, em menor número possível, permitiriam que tal cidade chegasse à constituição proposta por ele.
Por fim, Sócrates irá demonstrar que há conhecimento e opinião e que são coisas distintas. Os amigos do conhecimento são os filósofos, os que acolhem o próprio ser. São eles que têm condição de ver o justo em si e não apenas as coisas justas.
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