Até o livro VII, Sócrates desenvolveu o tema da constituição ideal, aquela que permitiria a justiça na cidade. Tal cidade teria as seguintes características: as mulheres e os filhos seriam comuns, as ocupações também seriam comuns, tanto na guerra quanto na paz e os melhores na filosofia e na guerra seriam os reis. Estes seriam sustentados pela cidade, não tendo posses. De fato, tudo seria comum a todos. Cada um teria o trabalho de acordo com a sua natureza. Sendo esta a constituição ideal, resta analisar as demais, que são defeituosas. Este tema dos diferentes tipos de governo já havia sido apresentado anteriormente e é retomado para ser desenvolvido no Livro VIII.
Partindo da aristocracia, Sócrates explica como ela se transforma em timocracia, a constituição que privilegia as honras. A timocracia está entre a aristocracia e a oligarquia. O homem que corresponde a essa forma de governo tem o gosto pelas disputas, é arrogante e menos chegado às musas. É bom ouvinte, mas não é bom orador. Este tipo de homem é violento com os escravos, brando com os homens livres e bastante submisso aos governantes. Gosta do poder e das honras e pensa que as terá através de seus feitos na guerra. Sua natureza é avarenta, pois, segundo Sócrates, sua virtude não é pura por faltar-lhe a razão e a música.
A oligarquia surge principalmente por causa das riquezas. Aqueles que eram amantes das competições e das honras passam a ser amantes do lucro. Esta cidade se torna duas: a dos pobres e a dos ricos. O homem semelhante a tal forma de governo é trabalhador, parcimonioso e mesquinho.
A transição da oligarquia para democracia acontece, porque todos querem saciar o desejo de serem os mais ricos. Chegará o momento da rebelião, na qual os pobres levantar-se-ão contra os ricos e tomarão o poder. Nesta nova situação, ou seja, na democracia, não se é obrigado a governar nem a lutar. Sócrates descreve a democracia como uma forma de governo agradável sem chefes na qual os homens fariam o que quisessem: ora participando do governo, ora sendo um guerreiro, ora sendo um negociante.
Como esta forma de governo se transformou na tirania? Sócrates se refere à tirania como sendo nobre e a que mais destaca das outras; o leitor aqui poderá ficar em dúvida se esta é uma opinião genuína do filósofo ou se novamente ele usa de ironia. Na democracia, o excesso de liberdade tem como conseqüências que filhos não respeitem pais, discípulos não respeitem seus mestres. Os jovens tornam-se semelhantes aos mais velhos e passam a competir com eles. Os velhos, por sua vez, imitam os jovens para que não pareçam desagradáveis nem autoritários. O leitor aqui vai notar grande semelhança com nossos dias atuais; não é fato que hoje em dia os jovens não respeitam os mais velhos e estes, os mais velhos, tentam parecer jovens o máximo possível? A velhice parece ser desvalorizada na sociedade atual, não sendo vista como sinônimo de sabedoria e sim como sinônimo de decadência.
Sócrates irá explicar porque o excesso de liberdade leva à tirania; segundo o filósofo, agir com excesso geralmente resulta num movimento para a direção oposta; isto ocorre com os animais, com as plantas e mais ainda com as formas de governo. Sendo assim, o excesso de liberdade seria a causa da mudança para a tirania. O povo costuma ter como seu defensor um único homem; é este homem, este protetor que é a raiz de onde brota o tirano. Este protetor provocará guerras para que o povo precise de um chefe; a guerra também lhe dará pretexto para que ele elimine seus inimigos. Ele criará impostos para que os trabalhadores não tenham tempo de pensar em levantes ou revoltas. Com tais ações, ele passará a ser odiado pelo povo, e por causa disto, se cercará de guarda-costas numerosos. Para buscar guarda-costas fiéis, libertará os escravos. Os homens de bem fogem dele. No limite, esse tirano será capaz de usar de violência contra o próprio pai, ou seja, há a total inversão de valores.
Deste modo, o povo, ao fugir da escravidão cai no despotismo dos escravos, ou seja, em troca da liberdade sem limite, recebe a escravidão mais dura e amarga: a submissão aos escravos.Fica claro para o leitor neste momento, que era com ironia que Sócrates se referia à nobre tirania que se destacava de todas as outras. Obviamente, esta forma de governo se destaca negativamente e não positivamente, como se poderia interpretar inicialmente.
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
É só uma hipótese...
Bem, vou fazer uma pausa em Platão para discutir uma idéia que me surgiu em meio a uma aula de Estética (Estética, disciplina filosófica e não estética facial rsrsrs).
Estávamos discutindo sobre a obra de arte e a mudança que aconteceu desde o modernismo até a contemporaneidade. O modernismo tinha como proposta "estetizar" a vida no sentido de tornar a obra de arte acessível a toda a população; de fato o projeto moderno se concretizou... o "design" cumpriu esse papel: hoje em dia a "obra de arte" na forma de design pode ser comprada nas lojas de roupas, acessórios, móveis, casas e até nas embalagens de produtos à venda nos supermercados. Praticamente tudo tem design. Mas qual a conseqüência disto? A obra de arte perdeu sua substância, perdeu sua assinatura ou autoria. Quem é o autor daquela embalagem bonita de iogurte? Ninguém sabe. Não que a embalagem seja em si uma obra de arte, mas há uma intenção estética artística no desenho daquela embalagem.
Quanto à substância, a obra de arte tinha uma intenção, tinha uma proposta em geral descrita num manifesto. O design tem tão somente a proposta de ser agradável aos sentidos...
Agora... indo mais no âmago ainda da questão estética: alguém já parou para pensar por que adoramos determinados objetos? Por que desejamos ter determinada roupa ou carro? Alguns poderiam afirmar que desejamos ter uma roupa para nos proteger do frio e um carro para facilitar nossa locomoção. Certo, mas alguém me explica por que queremos comprar um enfeite de mesa ou de parede que não tem nenhuma utilidade a não ser "enfeitar"(ou enfeiar rsrsrs) o ambiente? Bem, meus leitores assíduos já sabem que minhas reflexões freqüentemente me levam ao tempo das cavernas...
Antes disso, convido o leitor a voltar seus olhos para o mundo animal: os adornos são usados por diversas espécies nos rituais de acasalamento. Por exemplo, certas espécies de pássaros buscam materiais na natureza tais como pedrinhas, plantas, sementes para embelezar seus territórios e atrair um parceiro. Ora... nosso amigo (ou amiga) das cavernas também devia ter sua estratégia de embelezamento para atrair (e manter) um parceiro... parte dessa estratégia devia ser manter em seu poder objetos esteticamente atraentes, ornamentos... Alguns afirmarão que tal estratégia ainda hoje se faz presente nos salões de beleza, spas, clínicas de cirurgia plástica e por aí vai - bem menos rudimentar evidentemente. Mas como é que o objeto artístico saiu (se é que saiu) desta motivação tão basal que é a reprodução da espécie, para ganhar ares de sofisticação social, capitalista, multimídia?
Explico: hoje em dia é como se a produção em massa de produtos de design, esvaziassem o sentido original da posse de tais objetos; antes, basal de manutenção da espécie mesmo e hoje, superficial da imagem e da aparência... mas no fundo o que queremos quando desejamos um objeto de arte? Qual a motivação mais profunda desse desejo? A minha hipótese é que no fundo, no fundo, a nossa motivação ainda é basal; sem saber conscientemente, sem buscar isso intencionalmente... os nossos genes nos impelem a atrair o olhar do outro.
Estávamos discutindo sobre a obra de arte e a mudança que aconteceu desde o modernismo até a contemporaneidade. O modernismo tinha como proposta "estetizar" a vida no sentido de tornar a obra de arte acessível a toda a população; de fato o projeto moderno se concretizou... o "design" cumpriu esse papel: hoje em dia a "obra de arte" na forma de design pode ser comprada nas lojas de roupas, acessórios, móveis, casas e até nas embalagens de produtos à venda nos supermercados. Praticamente tudo tem design. Mas qual a conseqüência disto? A obra de arte perdeu sua substância, perdeu sua assinatura ou autoria. Quem é o autor daquela embalagem bonita de iogurte? Ninguém sabe. Não que a embalagem seja em si uma obra de arte, mas há uma intenção estética artística no desenho daquela embalagem.
Quanto à substância, a obra de arte tinha uma intenção, tinha uma proposta em geral descrita num manifesto. O design tem tão somente a proposta de ser agradável aos sentidos...
Agora... indo mais no âmago ainda da questão estética: alguém já parou para pensar por que adoramos determinados objetos? Por que desejamos ter determinada roupa ou carro? Alguns poderiam afirmar que desejamos ter uma roupa para nos proteger do frio e um carro para facilitar nossa locomoção. Certo, mas alguém me explica por que queremos comprar um enfeite de mesa ou de parede que não tem nenhuma utilidade a não ser "enfeitar"(ou enfeiar rsrsrs) o ambiente? Bem, meus leitores assíduos já sabem que minhas reflexões freqüentemente me levam ao tempo das cavernas...
Antes disso, convido o leitor a voltar seus olhos para o mundo animal: os adornos são usados por diversas espécies nos rituais de acasalamento. Por exemplo, certas espécies de pássaros buscam materiais na natureza tais como pedrinhas, plantas, sementes para embelezar seus territórios e atrair um parceiro. Ora... nosso amigo (ou amiga) das cavernas também devia ter sua estratégia de embelezamento para atrair (e manter) um parceiro... parte dessa estratégia devia ser manter em seu poder objetos esteticamente atraentes, ornamentos... Alguns afirmarão que tal estratégia ainda hoje se faz presente nos salões de beleza, spas, clínicas de cirurgia plástica e por aí vai - bem menos rudimentar evidentemente. Mas como é que o objeto artístico saiu (se é que saiu) desta motivação tão basal que é a reprodução da espécie, para ganhar ares de sofisticação social, capitalista, multimídia?
Explico: hoje em dia é como se a produção em massa de produtos de design, esvaziassem o sentido original da posse de tais objetos; antes, basal de manutenção da espécie mesmo e hoje, superficial da imagem e da aparência... mas no fundo o que queremos quando desejamos um objeto de arte? Qual a motivação mais profunda desse desejo? A minha hipótese é que no fundo, no fundo, a nossa motivação ainda é basal; sem saber conscientemente, sem buscar isso intencionalmente... os nossos genes nos impelem a atrair o olhar do outro.
domingo, 31 de agosto de 2008
A República, Livro VII - o Mito da Caverna
Comentário sobre o Livro VII de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
O início do Livro VII trata, dentre outros assuntos, do mito da caverna, uma passagem bastante comentada desta obra. A hipótese proposta por Sócrates é que os homens estão numa caverna, olhando para a parede dela, de costas para uma fogueira que projeta sombras. Os homens estão presos e não podem olhar para trás, de modo que tudo o que conhecem são as sombras projetadas. Se um homem for levado para fora da caverna, terá seus olhos feridos pela claridade se olhar diretamente para as coisas imediatamente; assim ele terá que vagarosamente acostumar seus olhos, primeiro olhando ainda as sombras projetadas fora da caverna, depois os reflexos das coisas na água, conseguindo então, um pouco mais tarde, contemplar os astros à noite e, por fim, o sol e a luz do sol. Ou seja, só depois de acostumar seus olhos, o homem poderá ver as coisas na sua plenitude.
Este mesmo homem, ao voltar para a caverna, teria que acostumar novamente seus olhos às sombras. Nesse período de adaptação, seria menos capaz do que os outros que nunca saíram de lá; se este homem tentasse levar qualquer outro para fora da caverna, provavelmente seria morto, pois na concepção dos que nunca saíram da caverna, o “sair da caverna” lesa os olhos.
Sócrates pede que esta imagem seja aplicada a tudo o que veio antes. No que ele chama de mundo cognoscível, a idéia do bem é a mais difícil de ver e vem por último. No entanto, se é vista, impõe-se como a causa de tudo o que é correto e belo. No mundo visível, ela gera a luz; no mundo inteligível é ela que dá a verdade e a inteligência.
É natural que aqueles que chegaram a conhecer a idéia do bem não queriam voltar a exercer as atividades dos homens, mas no caso do filósofo guardião, como foi a própria cidade que o formou, ou seja, que deu toda a condição para que ele enxergasse a verdade, ele terá que voltar para as questões dos homens, pois é justo que ele devolva para a cidade o que ela investiu no filósofo guardião.
Sócrates volta, portanto, ao tema com o qual iniciou o livro VI afirmando que os filósofos deveriam ser os governantes já que são “filósofos os capazes de chegar àquilo que, do mesmo ponto de vista, é sempre o mesmo”. E sendo assim, são os capazes de salvaguardar as leis e as instituições da cidade.
Cabem aos fundadores da cidade ideal fazer com que as melhores naturezas caminhem para o alto e aprendam a ver o bem. Mas não devem permitir que elas permaneçam lá. Estas pessoas deverão buscar o governo como algo que não podem recusar – agora o leitor entende melhor porque Sócrates afirmava anteriormente que o melhor governante é aquele que não quer o governo, mas não tem como recusá-lo; tendo o filósofo conhecido o bem, enxergado a luz e entendido a verdade, ficaria, por sua vontade, neste plano elevado, mas sendo preparado pela própria cidade para ser seu guardião, vê-se obrigado a voltar para o plano dos homens.
O livro VII ainda fala da educação para os cidadãos, mas paremos por aqui para explorarmos um pouco mais o mito da caverna.
Apresento ao leitor, para referência, um trecho do livro Platão e Aristóteles, O fascínio da Filosofia de Marco Zingano (Imortais da Ciência, Coordenação Marcelo Gleiser, Odysseus Editora, 2005): "aquele que acredita somente no que vê e sente é como um homem acorrentado no fundo de uma caverna que assiste ao espetáculo das sombras de objetos que lhe são projetadas em seus muros. Sem ver de onde vem essa projeção e tomando as sombras pelas próprias coisas, não suspeita que os objetos, os verdadeiros, se encontram fora da caverna. Se, porém, conseguir livrar-se de seus grilhões, verá então que não passavam de sombras, e tentará, com grande esforço, galgar as entranhas da caverna para sair dela; lá fora, cegado pela luminosidade que desconhecia inteiramente, terá primeiro de acostumar-se com ela para enfim um dia mirar de frente o Sol, fonte de toda luz. O Sol simboliza a Idéia suprema; a saída da caverna designa o abandono do mundo das sensações em proveito unicamente do pensamento; os grilhões, nossa obstinação com o mundo da experiência."
Ainda para ilustrar o mito da caverna, eu trago aqui para o texto um filme que eu acho genial em vários aspectos: Matrix. Após o trauma da morte, Neo renasce e passa e enxergar o mundo em símbolos, ou seja, ele passa a enxergar a matrix como ela é e não mais como ela aparenta ser. Ao morrer, ele consegue finalmente se livrar dos grilhões que o prendiam à visão tradicional do mundo, à visão das sombras, das aparências. Ao renascer, ele sai da caverna e enxerga a verdade - foi dolorido conseguir ver a verdade (essa dor está representada na passagem pela morte), mas o seu renascimento é pleno e luminoso, quando toda a verdade se apresenta a seus olhos... Quem quer ficar na caverna e quem se arrisca a olhar diretamente para o Sol?
O início do Livro VII trata, dentre outros assuntos, do mito da caverna, uma passagem bastante comentada desta obra. A hipótese proposta por Sócrates é que os homens estão numa caverna, olhando para a parede dela, de costas para uma fogueira que projeta sombras. Os homens estão presos e não podem olhar para trás, de modo que tudo o que conhecem são as sombras projetadas. Se um homem for levado para fora da caverna, terá seus olhos feridos pela claridade se olhar diretamente para as coisas imediatamente; assim ele terá que vagarosamente acostumar seus olhos, primeiro olhando ainda as sombras projetadas fora da caverna, depois os reflexos das coisas na água, conseguindo então, um pouco mais tarde, contemplar os astros à noite e, por fim, o sol e a luz do sol. Ou seja, só depois de acostumar seus olhos, o homem poderá ver as coisas na sua plenitude.
Este mesmo homem, ao voltar para a caverna, teria que acostumar novamente seus olhos às sombras. Nesse período de adaptação, seria menos capaz do que os outros que nunca saíram de lá; se este homem tentasse levar qualquer outro para fora da caverna, provavelmente seria morto, pois na concepção dos que nunca saíram da caverna, o “sair da caverna” lesa os olhos.
Sócrates pede que esta imagem seja aplicada a tudo o que veio antes. No que ele chama de mundo cognoscível, a idéia do bem é a mais difícil de ver e vem por último. No entanto, se é vista, impõe-se como a causa de tudo o que é correto e belo. No mundo visível, ela gera a luz; no mundo inteligível é ela que dá a verdade e a inteligência.
É natural que aqueles que chegaram a conhecer a idéia do bem não queriam voltar a exercer as atividades dos homens, mas no caso do filósofo guardião, como foi a própria cidade que o formou, ou seja, que deu toda a condição para que ele enxergasse a verdade, ele terá que voltar para as questões dos homens, pois é justo que ele devolva para a cidade o que ela investiu no filósofo guardião.
Sócrates volta, portanto, ao tema com o qual iniciou o livro VI afirmando que os filósofos deveriam ser os governantes já que são “filósofos os capazes de chegar àquilo que, do mesmo ponto de vista, é sempre o mesmo”. E sendo assim, são os capazes de salvaguardar as leis e as instituições da cidade.
Cabem aos fundadores da cidade ideal fazer com que as melhores naturezas caminhem para o alto e aprendam a ver o bem. Mas não devem permitir que elas permaneçam lá. Estas pessoas deverão buscar o governo como algo que não podem recusar – agora o leitor entende melhor porque Sócrates afirmava anteriormente que o melhor governante é aquele que não quer o governo, mas não tem como recusá-lo; tendo o filósofo conhecido o bem, enxergado a luz e entendido a verdade, ficaria, por sua vontade, neste plano elevado, mas sendo preparado pela própria cidade para ser seu guardião, vê-se obrigado a voltar para o plano dos homens.
O livro VII ainda fala da educação para os cidadãos, mas paremos por aqui para explorarmos um pouco mais o mito da caverna.
Apresento ao leitor, para referência, um trecho do livro Platão e Aristóteles, O fascínio da Filosofia de Marco Zingano (Imortais da Ciência, Coordenação Marcelo Gleiser, Odysseus Editora, 2005): "aquele que acredita somente no que vê e sente é como um homem acorrentado no fundo de uma caverna que assiste ao espetáculo das sombras de objetos que lhe são projetadas em seus muros. Sem ver de onde vem essa projeção e tomando as sombras pelas próprias coisas, não suspeita que os objetos, os verdadeiros, se encontram fora da caverna. Se, porém, conseguir livrar-se de seus grilhões, verá então que não passavam de sombras, e tentará, com grande esforço, galgar as entranhas da caverna para sair dela; lá fora, cegado pela luminosidade que desconhecia inteiramente, terá primeiro de acostumar-se com ela para enfim um dia mirar de frente o Sol, fonte de toda luz. O Sol simboliza a Idéia suprema; a saída da caverna designa o abandono do mundo das sensações em proveito unicamente do pensamento; os grilhões, nossa obstinação com o mundo da experiência."
Ainda para ilustrar o mito da caverna, eu trago aqui para o texto um filme que eu acho genial em vários aspectos: Matrix. Após o trauma da morte, Neo renasce e passa e enxergar o mundo em símbolos, ou seja, ele passa a enxergar a matrix como ela é e não mais como ela aparenta ser. Ao morrer, ele consegue finalmente se livrar dos grilhões que o prendiam à visão tradicional do mundo, à visão das sombras, das aparências. Ao renascer, ele sai da caverna e enxerga a verdade - foi dolorido conseguir ver a verdade (essa dor está representada na passagem pela morte), mas o seu renascimento é pleno e luminoso, quando toda a verdade se apresenta a seus olhos... Quem quer ficar na caverna e quem se arrisca a olhar diretamente para o Sol?
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
Livro VI de "A República" de Platão
Comentário sobre o Livro VI de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
No final do livro V, Sócrates havia dito que os amigos do conhecimento são os filósofos, os que acolhem o próprio ser. São eles que têm condição de ver o justo em si e não apenas as coisas justas.
Sócrates inicia o livro VI afirmando que os filósofos deveriam ser os governantes já que são “filósofos os capazes de chegar àquilo que, do mesmo ponto de vista, é sempre o mesmo”. E sendo assim, são os capazes de salvaguardar as leis e as instituições da cidade.
A natureza destes homens é ter um amor pela ciência (pela verdade) que revela a essência do que é realmente e que não se corrompe. Eles recusam a mentira e sentem ódio por ela – “quem realmente ama a ciência tem qualidades naturais para a busca do ser e não fica na multiplicidade daquilo que parece ser, mas avança na busca, não perde a garra, nem desiste de seu amor, antes de atingir a natureza de cada coisa...”.
Ao falar sobre a alma filosófica, Sócrates afirma que ela é mansa e justa desde a infância, tem facilidade para aprender e é capaz de reter conhecimento.
Ao resumir as qualidades do filósofo, temos: “...dotado de boa memória, de facilidade para aprender, de magnanimidade, de graça, e .... (tendo) afinidade e parentesco com a verdade, a justiça, a coragem e a temperança”.
Após definir as qualidades, Sócrates lança a pergunta: por que a maioria é de homens maus? Para responder a essa pergunta devemos observar a corrupção da natureza do filósofo. O estranho é que cada uma das qualidades naturais destrói a alma que as possue. Tudo o que é considerado bom afasta a alma da filosofia: beleza, riqueza, parentesco, força física. Ora, uma alma medíocre não é capaz de grandes feitos, mas uma alma vigorosa corrompida por uma educação excepcionalmente ruim será capaz das piores injustiças.
Pausa para reflexão...
Um ponto interessante é o modo com o governante seria escolhido: segundo Sócrates, todo aquele que precisa ser governado deveria ir às portas do governante e não o governante pedir aos governados que os deixe governar, uma vez que são os governados que precisam do governante e não o contrário. Ele usa a analogia do doente procurando um médico: se eu estou doente, sou eu quem procura um médico e não o contrário, certo? Que diferença da corrida pelo poder que vemos no nosso cotidiano! Ainda mais em época de eleições... o leitor já imaginou como seria se o povo corresse atrás de um governante e implorasse para que ele governasse? E ele fosse muito reticente ao aceitar porque sabe da responsabilidade e do peso que isso significa? Mais uma pausa para reflexão ...
Com relação às constituições, Sócrates diz que nenhuma das atuais (atual = Grécia antiga) é conveniente à filosofia. Idealmente, a cidade deveria tratar a filosofia de modo que não perecesse, abordando seu estudo de modo oposto ao que estava sendo usado no momento. A proposta de Sócrates é: “quando são mocinhos e crianças, devem ter trato com uma educação e uma filosofia apropriada aos jovens e, no momento em que estão crescendo e se tornam homens, devem cuidar bem de seus corpos, conseguindo assim uma ajuda para a filosofia. Com o avanço da idade, no momento em que a alma começa a atingir seu desenvolvimento pleno, devem intensificar os exercícios relacionados com ela. E quando perdem a força física e ficam fora da política e das campanhas bélicas, então, como os animais sagrados já podem pastar em liberdade e nada fazer exceto o que para eles seja um passatempo, se é que se quer que vivam felizes, e depois de sua morte, o destino deles lá corresponda à vida vivida aqui”. Aqui é curiosa a comparação com os animais sagrados e, conforme explicado na nota 15 do Livro VI, a alusão ao mito da reencarnação das almas.
O livro VI se encerra com a afirmação de que a inteligência corresponde à parte mais elevada da alma, o pensamento corresponde à segunda parte da alma, crença à terceira e verossimilhança à ultima e “quanto mais os objetos participarem da verdade, mais clareza terão”.
No final do livro V, Sócrates havia dito que os amigos do conhecimento são os filósofos, os que acolhem o próprio ser. São eles que têm condição de ver o justo em si e não apenas as coisas justas.
Sócrates inicia o livro VI afirmando que os filósofos deveriam ser os governantes já que são “filósofos os capazes de chegar àquilo que, do mesmo ponto de vista, é sempre o mesmo”. E sendo assim, são os capazes de salvaguardar as leis e as instituições da cidade.
A natureza destes homens é ter um amor pela ciência (pela verdade) que revela a essência do que é realmente e que não se corrompe. Eles recusam a mentira e sentem ódio por ela – “quem realmente ama a ciência tem qualidades naturais para a busca do ser e não fica na multiplicidade daquilo que parece ser, mas avança na busca, não perde a garra, nem desiste de seu amor, antes de atingir a natureza de cada coisa...”.
Ao falar sobre a alma filosófica, Sócrates afirma que ela é mansa e justa desde a infância, tem facilidade para aprender e é capaz de reter conhecimento.
Ao resumir as qualidades do filósofo, temos: “...dotado de boa memória, de facilidade para aprender, de magnanimidade, de graça, e .... (tendo) afinidade e parentesco com a verdade, a justiça, a coragem e a temperança”.
Após definir as qualidades, Sócrates lança a pergunta: por que a maioria é de homens maus? Para responder a essa pergunta devemos observar a corrupção da natureza do filósofo. O estranho é que cada uma das qualidades naturais destrói a alma que as possue. Tudo o que é considerado bom afasta a alma da filosofia: beleza, riqueza, parentesco, força física. Ora, uma alma medíocre não é capaz de grandes feitos, mas uma alma vigorosa corrompida por uma educação excepcionalmente ruim será capaz das piores injustiças.
Pausa para reflexão...
Um ponto interessante é o modo com o governante seria escolhido: segundo Sócrates, todo aquele que precisa ser governado deveria ir às portas do governante e não o governante pedir aos governados que os deixe governar, uma vez que são os governados que precisam do governante e não o contrário. Ele usa a analogia do doente procurando um médico: se eu estou doente, sou eu quem procura um médico e não o contrário, certo? Que diferença da corrida pelo poder que vemos no nosso cotidiano! Ainda mais em época de eleições... o leitor já imaginou como seria se o povo corresse atrás de um governante e implorasse para que ele governasse? E ele fosse muito reticente ao aceitar porque sabe da responsabilidade e do peso que isso significa? Mais uma pausa para reflexão ...
Com relação às constituições, Sócrates diz que nenhuma das atuais (atual = Grécia antiga) é conveniente à filosofia. Idealmente, a cidade deveria tratar a filosofia de modo que não perecesse, abordando seu estudo de modo oposto ao que estava sendo usado no momento. A proposta de Sócrates é: “quando são mocinhos e crianças, devem ter trato com uma educação e uma filosofia apropriada aos jovens e, no momento em que estão crescendo e se tornam homens, devem cuidar bem de seus corpos, conseguindo assim uma ajuda para a filosofia. Com o avanço da idade, no momento em que a alma começa a atingir seu desenvolvimento pleno, devem intensificar os exercícios relacionados com ela. E quando perdem a força física e ficam fora da política e das campanhas bélicas, então, como os animais sagrados já podem pastar em liberdade e nada fazer exceto o que para eles seja um passatempo, se é que se quer que vivam felizes, e depois de sua morte, o destino deles lá corresponda à vida vivida aqui”. Aqui é curiosa a comparação com os animais sagrados e, conforme explicado na nota 15 do Livro VI, a alusão ao mito da reencarnação das almas.
O livro VI se encerra com a afirmação de que a inteligência corresponde à parte mais elevada da alma, o pensamento corresponde à segunda parte da alma, crença à terceira e verossimilhança à ultima e “quanto mais os objetos participarem da verdade, mais clareza terão”.
domingo, 3 de agosto de 2008
Livro V de "A República" de Platão
Comentário sobre o Livro V de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
No livro IV, Sócrates definiu: as virtudes da cidade e na alma; o quanto a cidade deveria crescer; sobre o que legislar; como seriam as guerras e terminou introduzindo uma das formas de governo à qual ele nomeou monarquia, no caso em que há um governante e aristocracia, quando há vários.
Agora que ele definiu o papel do homem na cidade, ele se volta, no livro V, para o papel da mulher. É muito interessante a abordagem dele ao atribuir às mulheres o mesmo papel do homem. Segundo ele, as mulheres também devem aprender música e ginástica. Elas devem participar das guerras, sendo tratadas com as mesmas regras. Ele reconhece que essa proposição é vista como ridícula aos olhos dos costumes, mas é assim que deve ser (ele diz isto porque na Grécia antiga, as mulheres não eram cidadãs... na polis existiam os cidadãos, as mulheres e os escravos) . Cada um deve exercer a função que lhe cabe por natureza e a mulher não tem natureza diferente do homem: “... entre as ocupações da administração da cidade, nenhuma cabe à mulher porque ela é mulher, nem ao homem porque ele é homem, mas as qualidades naturais estão igualmente disseminadas nos dois sexos e, por natureza, a mulher participa de todas as ocupações e de todas também o homem, mas em todas elas a mulher é mais fraca que o homem.”. Por serem mais fracas que o homem, os trabalhos mais leves serão atribuídos às mulheres, mais elas participarão das guerras e das outras ações de guarda da cidade. É intrigante esta fala de Sócrates, pois nos livros anteriores, ele colocou as mulheres na mesma categoria das crianças e dos servos, ou seja, num nível abaixo dos homens; talvez, quando se trate de defender a cidade, todas as forças devam ser usadas, não importando tanto em que nível estão. Realmente recentemente li num artigo da revista "História Viva" que em tempos de guerra, os gregos libertavam os seus escravos para que eles lutassem e se aqueles que morriam lutando eram enterrados com honra e glória.
Seguindo, Sócrates aborda o assunto das famílias, como elas deveriam ser constituídas; ao ler sua proposta fiquei muito surpresa, foi como se estivesse lendo ficção científica. As idéias de Sócrates fizeram-me lembrar dos livros 1984 e Admirável Mundo Novo, nos quais a sociedade é controlada pelo governante de forma parecida.
Falando dos guardiões, ele propõe uma dissolução da família tradicional e em seu lugar, que todas as mulheres sejam comuns a todos os homens e que os filhos sejam comuns também, de modo que nenhum filho reconheça os pais e nem os pais reconheçam seus filhos. São os governantes que decidem o número de casamentos a fim de manter a população estável.
Aos corajosos na guerra, será permitido deitarem-se com mais mulheres, para que nasçam mais filhos corajosos. Vemos aqui um conceito de herança de características, ou seja, na visão de Platão, as características comportamentais eram passadas de pai para filho.
Nessa “família expandida”, não são os pais que cuidam dos filhos; eles são entregues às autoridades: “Os filhos dos bons, penso, esses encarregados pegarão e levarão para o redil, para junto de amas que moram aparte num lugar da cidade; as dos menos dotados e também as de uns e de outros, caso apresentem algum defeito, eles esconderão num local secreto e ignorado, como convém”.
Isto deve ser feito para “manter a raça dos guardiões pura”. No texto observei também em algumas ocasiões a comparação com animais, neste caso, há a comparação com cães de caça, pássaros de boa raça e cavalos. Os donos de tais animais se empenham para que somente os melhores tenham crias, de igual maneira, segundo Sócrates, assim deverão fazer também os governantes. E se para isso for necessário usar de mentira e fraude, que assim seja, pois “à guisa de remédio, coisas assim são úteis”. Sócrates já havia afirmado que o governante poderia mentir para o bem da cidade; aqui essa “ferramenta” é retomada com a função específica de controlar a quantidade e a qualidade dos cidadãos que nascem. Isso é bastante espantoso, para nós que vivemos hoje em dia – é como se a sobrevivência da cidade viesse acima de tudo, não importando os meios: largar os doentes à morte, mentir e fraudar, abandonar as crianças mais fracas, matar de fome as crianças ilegítimas. Parece que tudo se justifica para manter a cidade saudável, na concepção do filósofo.
Ele explica o porquê deste controle e do modelo de sociedade sem famílias: isso uniria toda a cidade numa só alegria ou numa só dor, uma vez que todos seriam irmãos, irmãs, pais e filhos.
Está faltando, a meu ver, levar em conta os sentimentos de afeto entre homens e mulheres, pais e filhos. Isso não pode ser extirpado da cidade, uma vez que é natural para nós sentir mais afeto pelos pares e descendentes; não acredito que os governantes conseguiriam controlar esse impulso natural com mentiras. Haveria revoltas, descontentamentos diversos e a mentira seria usada pelos cidadãos também para conseguirem o que mandam seus afetos. A cidade se degradaria.
Ainda no livro V, Sócrates afirma que os gregos não deveriam guerrear contra gregos, somente contra bárbaros, uma vez que as guerras internas enfraquecem as cidades, ficando mais suscetíveis a invasões externas. Ele sugere que se houver diferenças entre cidades gregas, que a vencedora tome a colheita da vencida – esta seria uma atitude moderada que permitiria que os cidadãos de ambos lugares, pudessem se reconciliar um dia. Aliás, Sócrates sugere que sejam feitos planos de reconciliação para que as cidades gregas não fiquem sempre em guerra.
Quando questionado se tal constituição poderia existir, Sócrates responde que não era intenção dele demonstrar que esse modelo poderia existir, no entanto, propõe que se for possível descobrir como uma cidade seja administrada de um modo que mais se aproxime do modelo, então que se conclua que pode existir a cidade perfeita. Depois disso ele irá analisar o que vai mal nas cidades que não possuem tal governo e quais mudanças, em menor número possível, permitiriam que tal cidade chegasse à constituição proposta por ele.
Por fim, Sócrates irá demonstrar que há conhecimento e opinião e que são coisas distintas. Os amigos do conhecimento são os filósofos, os que acolhem o próprio ser. São eles que têm condição de ver o justo em si e não apenas as coisas justas.
No livro IV, Sócrates definiu: as virtudes da cidade e na alma; o quanto a cidade deveria crescer; sobre o que legislar; como seriam as guerras e terminou introduzindo uma das formas de governo à qual ele nomeou monarquia, no caso em que há um governante e aristocracia, quando há vários.
Agora que ele definiu o papel do homem na cidade, ele se volta, no livro V, para o papel da mulher. É muito interessante a abordagem dele ao atribuir às mulheres o mesmo papel do homem. Segundo ele, as mulheres também devem aprender música e ginástica. Elas devem participar das guerras, sendo tratadas com as mesmas regras. Ele reconhece que essa proposição é vista como ridícula aos olhos dos costumes, mas é assim que deve ser (ele diz isto porque na Grécia antiga, as mulheres não eram cidadãs... na polis existiam os cidadãos, as mulheres e os escravos) . Cada um deve exercer a função que lhe cabe por natureza e a mulher não tem natureza diferente do homem: “... entre as ocupações da administração da cidade, nenhuma cabe à mulher porque ela é mulher, nem ao homem porque ele é homem, mas as qualidades naturais estão igualmente disseminadas nos dois sexos e, por natureza, a mulher participa de todas as ocupações e de todas também o homem, mas em todas elas a mulher é mais fraca que o homem.”. Por serem mais fracas que o homem, os trabalhos mais leves serão atribuídos às mulheres, mais elas participarão das guerras e das outras ações de guarda da cidade. É intrigante esta fala de Sócrates, pois nos livros anteriores, ele colocou as mulheres na mesma categoria das crianças e dos servos, ou seja, num nível abaixo dos homens; talvez, quando se trate de defender a cidade, todas as forças devam ser usadas, não importando tanto em que nível estão. Realmente recentemente li num artigo da revista "História Viva" que em tempos de guerra, os gregos libertavam os seus escravos para que eles lutassem e se aqueles que morriam lutando eram enterrados com honra e glória.
Seguindo, Sócrates aborda o assunto das famílias, como elas deveriam ser constituídas; ao ler sua proposta fiquei muito surpresa, foi como se estivesse lendo ficção científica. As idéias de Sócrates fizeram-me lembrar dos livros 1984 e Admirável Mundo Novo, nos quais a sociedade é controlada pelo governante de forma parecida.
Falando dos guardiões, ele propõe uma dissolução da família tradicional e em seu lugar, que todas as mulheres sejam comuns a todos os homens e que os filhos sejam comuns também, de modo que nenhum filho reconheça os pais e nem os pais reconheçam seus filhos. São os governantes que decidem o número de casamentos a fim de manter a população estável.
Aos corajosos na guerra, será permitido deitarem-se com mais mulheres, para que nasçam mais filhos corajosos. Vemos aqui um conceito de herança de características, ou seja, na visão de Platão, as características comportamentais eram passadas de pai para filho.
Nessa “família expandida”, não são os pais que cuidam dos filhos; eles são entregues às autoridades: “Os filhos dos bons, penso, esses encarregados pegarão e levarão para o redil, para junto de amas que moram aparte num lugar da cidade; as dos menos dotados e também as de uns e de outros, caso apresentem algum defeito, eles esconderão num local secreto e ignorado, como convém”.
Isto deve ser feito para “manter a raça dos guardiões pura”. No texto observei também em algumas ocasiões a comparação com animais, neste caso, há a comparação com cães de caça, pássaros de boa raça e cavalos. Os donos de tais animais se empenham para que somente os melhores tenham crias, de igual maneira, segundo Sócrates, assim deverão fazer também os governantes. E se para isso for necessário usar de mentira e fraude, que assim seja, pois “à guisa de remédio, coisas assim são úteis”. Sócrates já havia afirmado que o governante poderia mentir para o bem da cidade; aqui essa “ferramenta” é retomada com a função específica de controlar a quantidade e a qualidade dos cidadãos que nascem. Isso é bastante espantoso, para nós que vivemos hoje em dia – é como se a sobrevivência da cidade viesse acima de tudo, não importando os meios: largar os doentes à morte, mentir e fraudar, abandonar as crianças mais fracas, matar de fome as crianças ilegítimas. Parece que tudo se justifica para manter a cidade saudável, na concepção do filósofo.
Ele explica o porquê deste controle e do modelo de sociedade sem famílias: isso uniria toda a cidade numa só alegria ou numa só dor, uma vez que todos seriam irmãos, irmãs, pais e filhos.
Está faltando, a meu ver, levar em conta os sentimentos de afeto entre homens e mulheres, pais e filhos. Isso não pode ser extirpado da cidade, uma vez que é natural para nós sentir mais afeto pelos pares e descendentes; não acredito que os governantes conseguiriam controlar esse impulso natural com mentiras. Haveria revoltas, descontentamentos diversos e a mentira seria usada pelos cidadãos também para conseguirem o que mandam seus afetos. A cidade se degradaria.
Ainda no livro V, Sócrates afirma que os gregos não deveriam guerrear contra gregos, somente contra bárbaros, uma vez que as guerras internas enfraquecem as cidades, ficando mais suscetíveis a invasões externas. Ele sugere que se houver diferenças entre cidades gregas, que a vencedora tome a colheita da vencida – esta seria uma atitude moderada que permitiria que os cidadãos de ambos lugares, pudessem se reconciliar um dia. Aliás, Sócrates sugere que sejam feitos planos de reconciliação para que as cidades gregas não fiquem sempre em guerra.
Quando questionado se tal constituição poderia existir, Sócrates responde que não era intenção dele demonstrar que esse modelo poderia existir, no entanto, propõe que se for possível descobrir como uma cidade seja administrada de um modo que mais se aproxime do modelo, então que se conclua que pode existir a cidade perfeita. Depois disso ele irá analisar o que vai mal nas cidades que não possuem tal governo e quais mudanças, em menor número possível, permitiriam que tal cidade chegasse à constituição proposta por ele.
Por fim, Sócrates irá demonstrar que há conhecimento e opinião e que são coisas distintas. Os amigos do conhecimento são os filósofos, os que acolhem o próprio ser. São eles que têm condição de ver o justo em si e não apenas as coisas justas.
segunda-feira, 28 de julho de 2008
Ideologia - o que é isto? (baseado na leitura do livro da Marilena Chauí - "O que é ideologia")
Oi pessoal, vamos fazer uma pequena pausa em "A República" para publicar uma discussão sobre ideologia.
Eu disse em outro fórum:
... estou lendo o livrinho da Ideologia da Chauí. Ainda não terminei porque empaquei num ponto: ela diz que há uma separação entre o detentor do capital e o trabalhador assalariado; este tem parte do seu trabalho não remunerada - a mais valia - que vai justamente engordar o capital e fazer girar o sistema. O que me chamou a atenção é que hoje em dia, nas empresas S/A vc não tem a figura do capitalista, vc tem uma pulverização do capital... aliás não é incomum que o acionista também seja um assalariado, o que significa que as divisões em classes, e consequentemente a luta de classes está ficando muito esquisita, pois a mesma pessoa pode estar dos dois lados e brigando por objetivos conflitantes...Como assalariada ela vai brigar por mais salário, menos trabalho... como acionista ela quer mais lucro...Como isso é possível? Será que alienação atingiu tal tamanho que a pessoa não perceba que está numa contradição?
Outra coisa que sempre me vem na cabeça é que se os acionistas querem sempre mais lucro, ano após ano...E todas as empresas fazem a mesma coisa...E os recursos são finitos....E há um limite para a pobreza...senão vc vai matar o seu próprio consumidor....então este sistema vai entrar em colapso mais cedo ou mais tarde...é inevitável...o que virá em seguida?
Bjs!!!
O Mauro Berimbau me respondeu:
...ela (a Marilena Chauí) diz que há uma separação entre o detentor do capital e o trabalhador assalariado; este tem parte do seu trabalho não remunerada - a mais valia - que vai justamente engordar o capital e fazer girar o sistema...[...] "O que me chamou a atenção é que hoje em dia, nas empresas S/A vc não tem a figura do capitalista, vc tem uma pulverização do capital... aliás não é incomum que o acionista também seja um assalariado, o que significa que as divisões em classes, e consequentemente a luta de classes está ficando muito esquisita, pois a mesma pessoa pode estar dos dois lados e brigando por objetivos conflitantes..."[Mauro] Acho que é por isso que a frase da Chauí está em um livro com nome "ideologia". Ela funciona tão bem, mas tão bem, que todos acreditam cegamente nela. Essa "crença cega" é como se fosse um sonho... as pessoas não despertam! Até mesmo quem a construiu sonha esse sonho. É mais ou menos essa a idéia de um autor que li recentemente chamado Dietmar Kamper.Ele fala a respeito de um espírito, o espírito dos homens, que considera sendo a soma de todas as imaterialidades, símbolos e signos que existem na mente humana. Por exemplo, uma árvore, nas nossas cabeças, não é uma árvore de verdade, porque uma árvore de verdade não cabe nas nossas cabeças. O que cabe é a imagem, o signo, o símbolo de árvore. O signo "árvore" é interpretado por você, mas também é interpretado por outras pessoas. Esse signo, essa imaterialidade, é o que cabe na cabeça de todos, e é o que permite a comunicação. Kamper então chama a soma de todas as imaterialidades, de símbolos dos homens, de "espírito".Nas sociedades midiáticas, esse "espírito" é reproduzido pela máquina, pelos "suportes maquínicos" - pela TV, pelo jornal, pelo rádio, pelo computador... Mas quando esse espírito se apresenta pela máquina, não é o mesmo espírito. É uma imagem idealizada. É a materialização do espírito humano através da máquina. Por exemplo: a árvore no desenho animado não é a árvore, mas é a materialização do símbolo "árvore". Assim é também o super-homem, uma materialização de uma parte do espírito humano. Uma construção que se apresenta através das máquinas e que lhe confere materialidade.Essas máquinas, então, realizaram um sonho arcaico do espírito humano: "de estar o tempo todo em toda parte e em nenhum lugar". Afinal, esse espírito não se apresenta como algo que teve um começo, porque isso seria atestar que teria um fim. Ele se apresenta como algo que sempre existiu, que sempre existirá. Sempre foi assim e sempre será. Não parece com uma ideologia? Esse espírito, por se apresentar como imortal e ser onipresente (não detalharei isso aqui, mas tenha como exemplo a divertida caçada por McDonalds que fazemos quando vamos para outros países) se apresenta como um Deus.Daí surge a figura que Kamper descreve, onde diz "Deus sonha os homens - os homens sonham as máquinas - as máquinas sonham Deus". - "Deus sonha os homens": Esse deus, esse conjunto de imaterialidades do espírito materializadas através da máquina, sonha o homem. Cria ele. O constrói. Apresenta o homem como ele foi, como ele é e como ele será. É através do Deus que vemos como foi o homem do passado no History Channel e como será o homem do futuro em Star Trek. Mas ele apenas "sonha" os homens, porque não o apresenta como é.- "Os homens sonham as máquinas": Porque é através delas que ele persegue o seu desejo de poder, de conquista, se armando até os dentes de máquinas. As máquinas são as criações do homem que deseja ser Deus. Sonhamos a máquina que nos fará viajar pelo espaço, nos comunicar e nos transportar livremente. O homem apenas "sonha" as máquinas, porque não as constrói como as realmente deseja.- "As máquinas sonham Deus": é pela maquinaria midiática que esse espírito se revela, que o Deus se materializa. Star Trek, a novela da Globo e o noticiário das 8 fazem parte da mesma materialização do espírito do homem, que só é possível porque a máquina permite. Ela apenas sonha o Deus, porque não o apresenta em sua totalidade.A idéia de sonho, aqui, se contrapõe ao "despertar". Todos nós, homens, máquinas e Deus, vivemos em sonho. Kamper acredita que não há como despertar."Como assalariada ela vai brigar por mais salário, menos trabalho... como acionista ela quer mais lucro...Como isso é possível? Será que alienação atingiu tal tamanho que a pessoa não perceba que está numa contradição?"[Mauro] O que você chama de alienação, Kamper parece chamar de Deus - talvez seja um resultado da ação dele. Chauí chama de ideologia (que funciona exatamente porque todos acreditam nela, até seu criador) Talvez isso não seja uma contradição, porque estão todos vivendo o mesmo sonho, o sonho da imagem, da construção imagética que dá corpo aquilo que é imaterial e que forma homens sem espírito."Outra coisa que sempre me vem na cabeça é que se os acionistas querem sempre mais lucro, ano após ano...E todas as empresas fazem a mesma coisa...E os recursos são finitos....E há um limite para a pobreza...senão vc vai matar o seu próprio consumidor....então este sistema vai entrar em colapso mais cedo ou mais tarde...é inevitável...o que virá em seguida?"[Mauro] Eu já ouvi você fazendo essa pergunta várias vezes. É algo que te perturba de verdade... hehehe. Talvez por conviver com pessoas que jogam esse jogo todo dia, que lutam para que "as empresas", expressão que nada mais é que uma materialização do Deus, continuem sonhando o seu sonho. "Será que dá pra despertar do sonho?" é a versão esperançosa da sua pergunta "o que virá em seguida?". Em Matrix, desperta-se do sonho. E como é o despertar? Morpheus responde Neo com um "welcome to the desert of the real"...
__________________________________
Muito interessante, não é mesmo? :o)
Eu disse em outro fórum:
... estou lendo o livrinho da Ideologia da Chauí. Ainda não terminei porque empaquei num ponto: ela diz que há uma separação entre o detentor do capital e o trabalhador assalariado; este tem parte do seu trabalho não remunerada - a mais valia - que vai justamente engordar o capital e fazer girar o sistema. O que me chamou a atenção é que hoje em dia, nas empresas S/A vc não tem a figura do capitalista, vc tem uma pulverização do capital... aliás não é incomum que o acionista também seja um assalariado, o que significa que as divisões em classes, e consequentemente a luta de classes está ficando muito esquisita, pois a mesma pessoa pode estar dos dois lados e brigando por objetivos conflitantes...Como assalariada ela vai brigar por mais salário, menos trabalho... como acionista ela quer mais lucro...Como isso é possível? Será que alienação atingiu tal tamanho que a pessoa não perceba que está numa contradição?
Outra coisa que sempre me vem na cabeça é que se os acionistas querem sempre mais lucro, ano após ano...E todas as empresas fazem a mesma coisa...E os recursos são finitos....E há um limite para a pobreza...senão vc vai matar o seu próprio consumidor....então este sistema vai entrar em colapso mais cedo ou mais tarde...é inevitável...o que virá em seguida?
Bjs!!!
O Mauro Berimbau me respondeu:
...ela (a Marilena Chauí) diz que há uma separação entre o detentor do capital e o trabalhador assalariado; este tem parte do seu trabalho não remunerada - a mais valia - que vai justamente engordar o capital e fazer girar o sistema...[...] "O que me chamou a atenção é que hoje em dia, nas empresas S/A vc não tem a figura do capitalista, vc tem uma pulverização do capital... aliás não é incomum que o acionista também seja um assalariado, o que significa que as divisões em classes, e consequentemente a luta de classes está ficando muito esquisita, pois a mesma pessoa pode estar dos dois lados e brigando por objetivos conflitantes..."[Mauro] Acho que é por isso que a frase da Chauí está em um livro com nome "ideologia". Ela funciona tão bem, mas tão bem, que todos acreditam cegamente nela. Essa "crença cega" é como se fosse um sonho... as pessoas não despertam! Até mesmo quem a construiu sonha esse sonho. É mais ou menos essa a idéia de um autor que li recentemente chamado Dietmar Kamper.Ele fala a respeito de um espírito, o espírito dos homens, que considera sendo a soma de todas as imaterialidades, símbolos e signos que existem na mente humana. Por exemplo, uma árvore, nas nossas cabeças, não é uma árvore de verdade, porque uma árvore de verdade não cabe nas nossas cabeças. O que cabe é a imagem, o signo, o símbolo de árvore. O signo "árvore" é interpretado por você, mas também é interpretado por outras pessoas. Esse signo, essa imaterialidade, é o que cabe na cabeça de todos, e é o que permite a comunicação. Kamper então chama a soma de todas as imaterialidades, de símbolos dos homens, de "espírito".Nas sociedades midiáticas, esse "espírito" é reproduzido pela máquina, pelos "suportes maquínicos" - pela TV, pelo jornal, pelo rádio, pelo computador... Mas quando esse espírito se apresenta pela máquina, não é o mesmo espírito. É uma imagem idealizada. É a materialização do espírito humano através da máquina. Por exemplo: a árvore no desenho animado não é a árvore, mas é a materialização do símbolo "árvore". Assim é também o super-homem, uma materialização de uma parte do espírito humano. Uma construção que se apresenta através das máquinas e que lhe confere materialidade.Essas máquinas, então, realizaram um sonho arcaico do espírito humano: "de estar o tempo todo em toda parte e em nenhum lugar". Afinal, esse espírito não se apresenta como algo que teve um começo, porque isso seria atestar que teria um fim. Ele se apresenta como algo que sempre existiu, que sempre existirá. Sempre foi assim e sempre será. Não parece com uma ideologia? Esse espírito, por se apresentar como imortal e ser onipresente (não detalharei isso aqui, mas tenha como exemplo a divertida caçada por McDonalds que fazemos quando vamos para outros países) se apresenta como um Deus.Daí surge a figura que Kamper descreve, onde diz "Deus sonha os homens - os homens sonham as máquinas - as máquinas sonham Deus". - "Deus sonha os homens": Esse deus, esse conjunto de imaterialidades do espírito materializadas através da máquina, sonha o homem. Cria ele. O constrói. Apresenta o homem como ele foi, como ele é e como ele será. É através do Deus que vemos como foi o homem do passado no History Channel e como será o homem do futuro em Star Trek. Mas ele apenas "sonha" os homens, porque não o apresenta como é.- "Os homens sonham as máquinas": Porque é através delas que ele persegue o seu desejo de poder, de conquista, se armando até os dentes de máquinas. As máquinas são as criações do homem que deseja ser Deus. Sonhamos a máquina que nos fará viajar pelo espaço, nos comunicar e nos transportar livremente. O homem apenas "sonha" as máquinas, porque não as constrói como as realmente deseja.- "As máquinas sonham Deus": é pela maquinaria midiática que esse espírito se revela, que o Deus se materializa. Star Trek, a novela da Globo e o noticiário das 8 fazem parte da mesma materialização do espírito do homem, que só é possível porque a máquina permite. Ela apenas sonha o Deus, porque não o apresenta em sua totalidade.A idéia de sonho, aqui, se contrapõe ao "despertar". Todos nós, homens, máquinas e Deus, vivemos em sonho. Kamper acredita que não há como despertar."Como assalariada ela vai brigar por mais salário, menos trabalho... como acionista ela quer mais lucro...Como isso é possível? Será que alienação atingiu tal tamanho que a pessoa não perceba que está numa contradição?"[Mauro] O que você chama de alienação, Kamper parece chamar de Deus - talvez seja um resultado da ação dele. Chauí chama de ideologia (que funciona exatamente porque todos acreditam nela, até seu criador) Talvez isso não seja uma contradição, porque estão todos vivendo o mesmo sonho, o sonho da imagem, da construção imagética que dá corpo aquilo que é imaterial e que forma homens sem espírito."Outra coisa que sempre me vem na cabeça é que se os acionistas querem sempre mais lucro, ano após ano...E todas as empresas fazem a mesma coisa...E os recursos são finitos....E há um limite para a pobreza...senão vc vai matar o seu próprio consumidor....então este sistema vai entrar em colapso mais cedo ou mais tarde...é inevitável...o que virá em seguida?"[Mauro] Eu já ouvi você fazendo essa pergunta várias vezes. É algo que te perturba de verdade... hehehe. Talvez por conviver com pessoas que jogam esse jogo todo dia, que lutam para que "as empresas", expressão que nada mais é que uma materialização do Deus, continuem sonhando o seu sonho. "Será que dá pra despertar do sonho?" é a versão esperançosa da sua pergunta "o que virá em seguida?". Em Matrix, desperta-se do sonho. E como é o despertar? Morpheus responde Neo com um "welcome to the desert of the real"...
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Muito interessante, não é mesmo? :o)
domingo, 20 de julho de 2008
A República - Livro IV
E aí o que vcs estão achando de A República? Gostei bastante dos comentários que recebi sobre o Livro III - quem quiser acompanhar a discussão é só acessar a lista de comentários, logo abaixo do texto.
Bom, seguimos, então, com o livro IV - estamos quase na metade...
Comentário sobre o Livro IV de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
No livro IV, Sócrates dirá que a meta ao fundar a cidade não era fazer somente uma classe muito feliz, mas deixar todos na cidade felizes. Isso será possível ao dar a cada coisa o que lhe cabe, nem mais, nem menos. Se cada um for o melhor artífice em seu próprio ofício, participará da felicidade que a natureza lhes atribui. Segundo Sócrates, cada um deve fazer o que sua inclinação natural indica.
Sócrates afirma também que a riqueza produz luxo, ociosidade e gosto por inovações e a pobreza traz a grosseria e a maldade, por isso, devem ser evitadas. É curiosa a opinião sobre a inovação: que deve ser evitada. Esta posição é bastante diferente no mundo contemporâneo; hoje em dia se busca inovação constante como forma de diferenciação para a sobrevivência.
Como uma cidade sem riqueza poderia fazer guerra? Segundo Sócrates, seria fácil guerrear contra duas cidades. Como na cidade idealizada não é permitido acumular riquezas, bastaria oferecer a uma das duas outras cidades, a riqueza da outra cidade, a conquistada. Além disso, é mais fácil lutar contra ricos e gordos do que contra atletas e a cidade ideal teria guerreiros atletas, enquanto que as outras cidades, nas quais há riqueza, o exército seria constituído de ricos e gordos.
A seguir o tema abordado é o do tamanho da cidade: ela deve crescer até o limite no qual permaneça uma só. Ela permanecerá única contanto que cada cidadão faça o que sua inclinação natural indicar, não mais; aqui, a pluralidade é condenada em favor da unicidade.
Sobre as leis, Sócrates diz que a educação dá o impulso que determina o curso posterior e não se deve legislar sobre os bons costumes, isso seria ingênuo. Leis seriam criadas e revistas constantemente em busca da perfeição, para prevenir os maus costumes; mas é a educação que tem esta força, não a lei – aqui encontramos um paralelo muito atual com os nossos legisladores: quantas novas leis são criadas para proibir ou tentar conduzir práticas que deveriam ser normais para a maioria, bastando para isso uma boa educação. Nossa constituição, constantemente remendada não consegue dar conta de manter a ordem e a justiça – e nem poderia.
Agora que a cidade já tem suas bases, Sócrates convida os presentes para analisar onde está a justiça e onde está a injustiça. Bem, a cidade construída hipoteticamente no diálogo tem quatro virtudes: é sábia, corajosa, temperante e justa. A primeira virtude a ser analisada é a sabedoria: a cidade é sábia, pois é judiciosa nos seus julgamentos e é com ciência que se faz bons julgamentos. A ciência que delibera sobre a cidade como um todo é a ciência usada pelos guardiões. “É graças à classe, à porção que é menos numerosa, a que se mantém à frente dela e a governa, e à ciência que aí existe, que uma cidade, criada segundo a natureza, é integralmente sábia;...”. A ciência da qual participam os guardiões é a única que deve ser chamada de sabedoria.
A seguir Sócrates define o que é coragem: “Da opinião, formada sob a ação da lei e por intermédio da educação, sobre o que e quais são os perigos. Eu dizia que preservar essa opinião era mantê-la a salvo em qualquer situação, quer se esteja no meio de sofrimentos ou de prazeres, de paixões ou de temores, sem desfazer-se dela.”...”Tal força e preservação constante da opinião reta e legítima sobre o que constitui perigos ou não eu chamo e considero coragem”.
Já a temperança é dominar certos prazeres e desejos. Sócrates afirma que aquele cuja parte melhor domina a pior é chamado temperante. Temperança é uma espécie de harmonia, segue Sócrates: “...essa concordância é temperança, uma consonância natural do pior e do melhor sobre qual dos dois deve governar na cidade e também no íntimo de cada um.” e, diferentemente das outras duas outras virtudes citadas antes, deve estar presente em toda a cidade para que esta seja considerada temperante. Já a coragem e a sabedoria, uma vez estando presentes num pequeno grupo de cidadãos, já se pode dizer que a tal cidade possui estas virtudes.
Após explicar as virtudes, resta a Sócrates se voltar para a justiça que é finalmente definida como “cada um cumprir a tarefa que é sua” e possuir o que é seu. Ao contrário, se cada um se intrometer na função do outro ou tomar o que é posse do outro, teremos a injustiça.
Seguindo o seu método de analisar os mesmos aspectos na cidade e no indivíduo, agora que Sócrates examinou a cidade, ele se volta para o indivíduo. Ele procurará na alma do indivíduo as mesmas virtudes que ele identificou na cidade ideal e, encontrando-as, esse indivíduo será justo.
Há três partes distintas na alma: o desejo, o ímpeto e a razão. Se a educação é boa, o ímpeto auxiliará a razão em detrimento dos desejos. Se cada uma destas três partes cumpre sua tarefa com propriedade, então o homem será justo. Se uma parte for muito ativa e se intrometer na outra ou se uma das partes tentar dominar a alma, assumindo o comando, então o homem será injusto.
Por fim resta examinar se é justo cometer atos justos mesmo que os outros não tomem conhecimento de tais atos e se é injusto cometer injustiças mesmo que não haja punição. Para tanto, Sócrates se refere a cinco formas de governo e cinco formas de alma. A forma de governo tratada até então foi a monarquia ou a aristocracia; estas duas constituem uma única forma de governo: na primeira há um governante, na segunda, vários.
Bom, seguimos, então, com o livro IV - estamos quase na metade...
Comentário sobre o Livro IV de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
No livro IV, Sócrates dirá que a meta ao fundar a cidade não era fazer somente uma classe muito feliz, mas deixar todos na cidade felizes. Isso será possível ao dar a cada coisa o que lhe cabe, nem mais, nem menos. Se cada um for o melhor artífice em seu próprio ofício, participará da felicidade que a natureza lhes atribui. Segundo Sócrates, cada um deve fazer o que sua inclinação natural indica.
Sócrates afirma também que a riqueza produz luxo, ociosidade e gosto por inovações e a pobreza traz a grosseria e a maldade, por isso, devem ser evitadas. É curiosa a opinião sobre a inovação: que deve ser evitada. Esta posição é bastante diferente no mundo contemporâneo; hoje em dia se busca inovação constante como forma de diferenciação para a sobrevivência.
Como uma cidade sem riqueza poderia fazer guerra? Segundo Sócrates, seria fácil guerrear contra duas cidades. Como na cidade idealizada não é permitido acumular riquezas, bastaria oferecer a uma das duas outras cidades, a riqueza da outra cidade, a conquistada. Além disso, é mais fácil lutar contra ricos e gordos do que contra atletas e a cidade ideal teria guerreiros atletas, enquanto que as outras cidades, nas quais há riqueza, o exército seria constituído de ricos e gordos.
A seguir o tema abordado é o do tamanho da cidade: ela deve crescer até o limite no qual permaneça uma só. Ela permanecerá única contanto que cada cidadão faça o que sua inclinação natural indicar, não mais; aqui, a pluralidade é condenada em favor da unicidade.
Sobre as leis, Sócrates diz que a educação dá o impulso que determina o curso posterior e não se deve legislar sobre os bons costumes, isso seria ingênuo. Leis seriam criadas e revistas constantemente em busca da perfeição, para prevenir os maus costumes; mas é a educação que tem esta força, não a lei – aqui encontramos um paralelo muito atual com os nossos legisladores: quantas novas leis são criadas para proibir ou tentar conduzir práticas que deveriam ser normais para a maioria, bastando para isso uma boa educação. Nossa constituição, constantemente remendada não consegue dar conta de manter a ordem e a justiça – e nem poderia.
Agora que a cidade já tem suas bases, Sócrates convida os presentes para analisar onde está a justiça e onde está a injustiça. Bem, a cidade construída hipoteticamente no diálogo tem quatro virtudes: é sábia, corajosa, temperante e justa. A primeira virtude a ser analisada é a sabedoria: a cidade é sábia, pois é judiciosa nos seus julgamentos e é com ciência que se faz bons julgamentos. A ciência que delibera sobre a cidade como um todo é a ciência usada pelos guardiões. “É graças à classe, à porção que é menos numerosa, a que se mantém à frente dela e a governa, e à ciência que aí existe, que uma cidade, criada segundo a natureza, é integralmente sábia;...”. A ciência da qual participam os guardiões é a única que deve ser chamada de sabedoria.
A seguir Sócrates define o que é coragem: “Da opinião, formada sob a ação da lei e por intermédio da educação, sobre o que e quais são os perigos. Eu dizia que preservar essa opinião era mantê-la a salvo em qualquer situação, quer se esteja no meio de sofrimentos ou de prazeres, de paixões ou de temores, sem desfazer-se dela.”...”Tal força e preservação constante da opinião reta e legítima sobre o que constitui perigos ou não eu chamo e considero coragem”.
Já a temperança é dominar certos prazeres e desejos. Sócrates afirma que aquele cuja parte melhor domina a pior é chamado temperante. Temperança é uma espécie de harmonia, segue Sócrates: “...essa concordância é temperança, uma consonância natural do pior e do melhor sobre qual dos dois deve governar na cidade e também no íntimo de cada um.” e, diferentemente das outras duas outras virtudes citadas antes, deve estar presente em toda a cidade para que esta seja considerada temperante. Já a coragem e a sabedoria, uma vez estando presentes num pequeno grupo de cidadãos, já se pode dizer que a tal cidade possui estas virtudes.
Após explicar as virtudes, resta a Sócrates se voltar para a justiça que é finalmente definida como “cada um cumprir a tarefa que é sua” e possuir o que é seu. Ao contrário, se cada um se intrometer na função do outro ou tomar o que é posse do outro, teremos a injustiça.
Seguindo o seu método de analisar os mesmos aspectos na cidade e no indivíduo, agora que Sócrates examinou a cidade, ele se volta para o indivíduo. Ele procurará na alma do indivíduo as mesmas virtudes que ele identificou na cidade ideal e, encontrando-as, esse indivíduo será justo.
Há três partes distintas na alma: o desejo, o ímpeto e a razão. Se a educação é boa, o ímpeto auxiliará a razão em detrimento dos desejos. Se cada uma destas três partes cumpre sua tarefa com propriedade, então o homem será justo. Se uma parte for muito ativa e se intrometer na outra ou se uma das partes tentar dominar a alma, assumindo o comando, então o homem será injusto.
Por fim resta examinar se é justo cometer atos justos mesmo que os outros não tomem conhecimento de tais atos e se é injusto cometer injustiças mesmo que não haja punição. Para tanto, Sócrates se refere a cinco formas de governo e cinco formas de alma. A forma de governo tratada até então foi a monarquia ou a aristocracia; estas duas constituem uma única forma de governo: na primeira há um governante, na segunda, vários.
domingo, 13 de julho de 2008
A República - Livro III
Comentário sobre o Livro III de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
Havíamos visto nos Livros I e II Sócrates argumentar em prol da justiça e que as causas da injustiça seriam o fato de os homens quererem mais do que o necessário e uma educação fundamentada em maus exemplos.
Ele segue no Livro III como o tema da educação iniciando pela crítica aos textos poéticos: “Quanto mais poéticos forem (os textos), menos deverão ouvi-los crianças e homens que devem ser livres e temer mais a escravidão que a morte”.
Retomando a discussão sobre a justiça Sócrates afirma que “...poetas e também os prosadores, ao falar sobre os homens, erram quanto a assuntos da maior importância, quando dizem que muitos homens injustos são felizes e muitos justos são sofredores e que é útil ser injusto, se isso permanecer oculto, e que a justiça é um bem, mas um bem para o outro e, em causa própria, uma perda.” Daí o cuidado em relação aos poetas e prosadores.
Uma frase que resume o ideal que busca Sócrates na sua cidade é: “O verdadeiro amor, por natureza, ama a ordem e o belo com temperança e harmonia”. Para atingir esse ideal não basta vigiar os poetas, também todos os artífices deverão ser vigiados.
A música educa a alma e a ginástica o corpo; depois da música, os jovens deverão ser educados com a ginástica. Do mesmo modo que o recomendado para a música, a ginástica deve ser simples e moderada; assim, Sócrates vai criticar o zelo excessivo com o corpo. A variedade gera a intemperança na alma e a doença no corpo, mas a simplicidade na música gera temperança nas almas, e na ginástica, a saúde dos corpos.
Assim, o fato de uma cidade precisar de muitos médicos e juízes é um indício de uma má educação e complementa Sócrates “Mais vergonhoso que isso seja que alguém não só passe a maior parte de sua vida nos tribunais como réu ou autor de processos, mas também, por falta de bom gosto, ainda esteja convencido de que, justamente em razão disso, possa pavonear-se dizendo que é hábil na injustiça e capaz de encontrar todas as escapatórias, de esgueirar-se procurando todas as saídas para não sofrer punição, e isso por questões mínimas e de somenos importância, ignorando quão mais belo e melhor é dispor sua própria vida de modo que para nada precise de um juiz sonolento”. Então aqui é retomado o tema da injustiça como vantagem.
Quanto aos guardiões (governantes, soldados), este deverão ser escolhidos entre homens que farão sempre o que julgarem vantajoso para a cidade e não aceitarão fazer o contrário. O método sugerido para se selecionar tais governantes é descrito a seguir: “E já desde a infância, devemos observá-los ao propor-lhes tarefas em que muito facilmente se esqueceriam de tal lema (de fazer o melhor para a cidade) e se deixariam enganar, escolhendo quem dele se lembra e não se deixa enganar, e excluindo os outros”. Guardiões perfeitos.
Nesta cidade ideal ninguém tem algo de propriedade sua, a não ser o estritamente necessário. Os atletas da guerra recebem os víveres dos outros cidadãos como pagamento pela guarda. Na cidade é proibido aos guardiões qualquer contato com ouro e prata. “Assim salvariam a si mesmos e a cidade”.
Segundo Platão na voz de Sócrates, o modelo de educação para a cidade passa por uma espécie de censura dos poetas, na busca em apresentar, para as crianças e jovens, bons exemplos. Além disso, há uma prática da moderação em vários aspectos: na alimentação, na música, na ginástica. Eu entendo a censura aqui proposta como uma tentativa de preservar as crianças e jovens de maus exemplos; este é o conceito de censura que vemos hoje. Quanto à moderação, à essa temperança, isso é muito difícil encontrar no mundo moderno, pelo contrário, o que vemos é um radicalismo, um excesso em vários sentidos: super-atletas, super-modelos, hiper-mercados... Tudo é extremamente exagerado. Quanto mais se exagera, mais recurso é necessário, mais se trabalha, mais complexa torna-se a cidade. Talvez influenciado pela cultura norte-americana no seu aspecto da cultura do “maior do mundo”, o maior se transformou em sinônimo de melhor. Assim, se eu fosse tirar algo do texto de interessante para o nosso mundo contemporâneo, seria a moderação; as nossas cidades, ou mais especificamente nosso cotidiano se beneficiaria desta moderação. O contrário da moderação causa o tão falado estresse.
Havíamos visto nos Livros I e II Sócrates argumentar em prol da justiça e que as causas da injustiça seriam o fato de os homens quererem mais do que o necessário e uma educação fundamentada em maus exemplos.
Ele segue no Livro III como o tema da educação iniciando pela crítica aos textos poéticos: “Quanto mais poéticos forem (os textos), menos deverão ouvi-los crianças e homens que devem ser livres e temer mais a escravidão que a morte”.
Retomando a discussão sobre a justiça Sócrates afirma que “...poetas e também os prosadores, ao falar sobre os homens, erram quanto a assuntos da maior importância, quando dizem que muitos homens injustos são felizes e muitos justos são sofredores e que é útil ser injusto, se isso permanecer oculto, e que a justiça é um bem, mas um bem para o outro e, em causa própria, uma perda.” Daí o cuidado em relação aos poetas e prosadores.
Uma frase que resume o ideal que busca Sócrates na sua cidade é: “O verdadeiro amor, por natureza, ama a ordem e o belo com temperança e harmonia”. Para atingir esse ideal não basta vigiar os poetas, também todos os artífices deverão ser vigiados.
A música educa a alma e a ginástica o corpo; depois da música, os jovens deverão ser educados com a ginástica. Do mesmo modo que o recomendado para a música, a ginástica deve ser simples e moderada; assim, Sócrates vai criticar o zelo excessivo com o corpo. A variedade gera a intemperança na alma e a doença no corpo, mas a simplicidade na música gera temperança nas almas, e na ginástica, a saúde dos corpos.
Assim, o fato de uma cidade precisar de muitos médicos e juízes é um indício de uma má educação e complementa Sócrates “Mais vergonhoso que isso seja que alguém não só passe a maior parte de sua vida nos tribunais como réu ou autor de processos, mas também, por falta de bom gosto, ainda esteja convencido de que, justamente em razão disso, possa pavonear-se dizendo que é hábil na injustiça e capaz de encontrar todas as escapatórias, de esgueirar-se procurando todas as saídas para não sofrer punição, e isso por questões mínimas e de somenos importância, ignorando quão mais belo e melhor é dispor sua própria vida de modo que para nada precise de um juiz sonolento”. Então aqui é retomado o tema da injustiça como vantagem.
Quanto aos guardiões (governantes, soldados), este deverão ser escolhidos entre homens que farão sempre o que julgarem vantajoso para a cidade e não aceitarão fazer o contrário. O método sugerido para se selecionar tais governantes é descrito a seguir: “E já desde a infância, devemos observá-los ao propor-lhes tarefas em que muito facilmente se esqueceriam de tal lema (de fazer o melhor para a cidade) e se deixariam enganar, escolhendo quem dele se lembra e não se deixa enganar, e excluindo os outros”. Guardiões perfeitos.
Nesta cidade ideal ninguém tem algo de propriedade sua, a não ser o estritamente necessário. Os atletas da guerra recebem os víveres dos outros cidadãos como pagamento pela guarda. Na cidade é proibido aos guardiões qualquer contato com ouro e prata. “Assim salvariam a si mesmos e a cidade”.
Segundo Platão na voz de Sócrates, o modelo de educação para a cidade passa por uma espécie de censura dos poetas, na busca em apresentar, para as crianças e jovens, bons exemplos. Além disso, há uma prática da moderação em vários aspectos: na alimentação, na música, na ginástica. Eu entendo a censura aqui proposta como uma tentativa de preservar as crianças e jovens de maus exemplos; este é o conceito de censura que vemos hoje. Quanto à moderação, à essa temperança, isso é muito difícil encontrar no mundo moderno, pelo contrário, o que vemos é um radicalismo, um excesso em vários sentidos: super-atletas, super-modelos, hiper-mercados... Tudo é extremamente exagerado. Quanto mais se exagera, mais recurso é necessário, mais se trabalha, mais complexa torna-se a cidade. Talvez influenciado pela cultura norte-americana no seu aspecto da cultura do “maior do mundo”, o maior se transformou em sinônimo de melhor. Assim, se eu fosse tirar algo do texto de interessante para o nosso mundo contemporâneo, seria a moderação; as nossas cidades, ou mais especificamente nosso cotidiano se beneficiaria desta moderação. O contrário da moderação causa o tão falado estresse.
domingo, 6 de julho de 2008
Afinal, o que é justiça?
Olá pessoal,
Não deu certo tentar trabalhar com link no blog, então, segue aqui o meu texto.
Até +
Comentário sobre o Livro II de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
Afinal, o que é justiça?
É vício ou virtude? Seria justo prejudicar um inimigo? Essas são questões difíceis de responder. Tentemos definir o que é justiça: justiça poderia ser definida como “fazer o bem e devolver a todos o que é devido”, então seria justo fazer mal aos inimigos, pois a eles o que é devido é o mal? Não me parece correto; para o homem justo, não é certo prejudicar alguém.
Talvez as pessoas escolham ser injustas, pois parece ser mais vantajoso ser injusto. A experiência mostra que os injustos não são punidos, pelo contrário, gozam de riquezas e facilidades na vida cotidiana. Na Grécia antiga, se dizia que se um homem rico cometesse muitas injustiças na sua vida, poderia usar o dinheiro para repará-las e assim, garantir um bom após-vida. Ora, hoje em dia, não é muito diferente, as pessoas cometem as maiores atrocidades durante toda a sua vida e quando vão chegando perto do fim se arrependem e tentam remediar todo o estrago feito. Hoje, porém, no mundo ocidental, influenciado grandemente pela religião judaico-cristã, não é tão simples resolver os pecados cometidos, não só com dinheiro, pelo menos; a culpa cristã ganhou dimensões extraordinárias nas nossas cabeças. Os gregos não sofriam desse mal...
Então, é mais vantajoso ser injusto ou justo?
A justiça é uma espécie de bem, quando fazemos justiça nos sentimos felizes; entendo que justiça seja uma espécie de prática do amor. Deste ponto de vista é mais vantajoso ser justo, pois nos sentiremos bem e, de fato, quando fazemos justiça, ou quando vemos justiça sendo feita, nos sentimos bem. Mas será que o que chamamos de justiça é realmente justiça? Vejamos um simples exemplo do nosso cotidiano: os roteiros cinematográficos comerciais usam e abusam da trama de injustiças sendo resolvida no final com o mocinho prevalecendo sobre o bandido, ou seja, na concepção do roteirista e do público em geral, a justiça sendo feita. Algo que notei é que, cada vez mais, principalmente nas produções norte-americanas, o que vemos é o bandido não somente sendo preso ou levando uma lição que o faz se arrepender por seus atos, ele é torturado, massacrado, explodido, literalmente pulverizado da face da Terra – dá-se um fim ao bandido no limite do que se pode imaginar de mais cruel – ou melhor, de fato, não há limites. Mas se a justiça é uma espécie de prática do amor, não seria um ato injusto tratar o injusto, digo, o bandido, desta forma?
O que se vê nos filmes é a vingança do mal cometido pelo injusto, uma vez que nem sempre as leis, que deveriam ser baseadas no princípio de justiça, dão conta de reparar o mal feito, então parte-se para a justiça “com as próprias mãos”. Mas, se justiça é uma espécie de bem, então como pode ser justo o fato de devolver ao bandido o mal que ele causou? Seria a vingança uma espécie de justiça?
Se a vingança traz um bem-estar parece, então, ser mais vantajoso ser injusto com aqueles que foram injustos conosco. Mas será que a vingança realmente traz um bem-estar? O que traria maior bem-estar a vingança ou o perdão? Parece-me justo que quem cometeu injustiça seja punido, mas no âmbito pessoal, talvez seja o perdão, mais do que a vingança, aquele sentimento que traga maior bem-estar, mas voltemos ao tema.
Há ainda outro aspecto: na busca do bem-estar não basta ser justo, a pessoa justa deve parecer ser justa aos olhos dos outros, para que receba o reconhecimento e as honras por seu comportamento justo. Se o justo parecer injusto, ele será execrado pelo grupo no qual está inserido. O contrário para o injusto que, se parecer ser justo, receberá as honras e o respeito da comunidade. Então o que traz vantagem não é ser justo, mas parecer justo. Por fim, há a tese de que se o homem tiver a certeza de que não será punido pelas injustiças que cometer, ele não terá escrúpulo nenhum cometê-las e mais: ninguém é justo por espontânea vontade, só é justo porque é covarde, ou é velho ou tem qualquer outra fraqueza que o impede de cometer injustiças. Será?
Bem, estes temas estão presentes nos Livros I e II da República de Platão. Deixando a questão da reputação, ou seja, do parecer ser justo, de lado, o objetivo de Platão é mostrar que é melhor ser justo do que injusto e que a justiça é um bem. Tomando o livro II, o que Platão mostra, na voz de Sócrates, é como a injustiça nasce nas cidades, pois para mostrá-la no indivíduo ele a amplia na aglomeração das cidades para que ela fique mais clara, mais evidente. A cidade começa por causa das carências naturais de todos nós. As pessoas que vão formar a cidade têm aptidões diferentes e, para que se busque a sobrevivência da melhor maneira, cada qual com a sua especialidade, produz aquilo que será importante para ele e para o outro; deste modo, o agricultor produz o trigo, o sapateiro, sapatos e assim por diante. Sócrates vai expandindo o raciocínio da formação das cidades até englobar o comércio, os portos e toda a infra-estrutura que existia numa “polis” da época. Ora a injustiça parece surgir quando os homens passam a querer mais do que o necessário: as pessoas se lançam “numa busca infindável de bens, ultrapassando os limites do que é necessário”, vindo daí as guerras e a necessidade de criar um exército. Ele se detém na figura de um guardião (soldado, governante) e suas qualidades tais como astúcia e força. O guardião, para ser bom no que faz, não pode usar a astúcia e a força contra a sua própria cidade – os guardiões devem ser “brandos com os seus, mas rudes com os inimigos”; então, o que vai distinguir quando usar a força e a astúcia e quando não usá-las? A resposta é: o conhecimento - “o que o faz discernir uma figura amiga de uma hostil é que uma ele conhece, a outra não”. Portanto ele deve gostar do conhecimento, ou seja, gostar de aprender. A partir daí, Sócrates discorre sobre o modelo ideal de educação e que os mitos com deuses se prejudicando e mostrando atitudes injustas, não deveriam ser contados às crianças. Ou seja, é a educação pelos bons exemplos que levará a nova geração na direção da virtude. Daí podemos concluir que, segundo Platão, são duas as causas da injustiça: o fato de os homens quererem mais do que o necessário e uma educação fundamentada em maus exemplos.
Ainda não consegui responder a pergunta: o que é justiça? Eu não sei defini-la, mas sei que é melhor viver numa cidade mais justa do que mais injusta. Com leis que garantam punições para aqueles que cometam injustiças, mas não com objetivo de vingança e sim com objetivo de inibir atitudes maléficas para a cidade. Do que eu li até agora em A República, eu achei muito pertinente a idéia de que o fato do homem querer mais do que precisa gera injustiça – a ganância gera injustiça.
Não deu certo tentar trabalhar com link no blog, então, segue aqui o meu texto.
Até +
Comentário sobre o Livro II de A República, Platão. Martins Fontes, São Paulo, 2006.
Afinal, o que é justiça?
É vício ou virtude? Seria justo prejudicar um inimigo? Essas são questões difíceis de responder. Tentemos definir o que é justiça: justiça poderia ser definida como “fazer o bem e devolver a todos o que é devido”, então seria justo fazer mal aos inimigos, pois a eles o que é devido é o mal? Não me parece correto; para o homem justo, não é certo prejudicar alguém.
Talvez as pessoas escolham ser injustas, pois parece ser mais vantajoso ser injusto. A experiência mostra que os injustos não são punidos, pelo contrário, gozam de riquezas e facilidades na vida cotidiana. Na Grécia antiga, se dizia que se um homem rico cometesse muitas injustiças na sua vida, poderia usar o dinheiro para repará-las e assim, garantir um bom após-vida. Ora, hoje em dia, não é muito diferente, as pessoas cometem as maiores atrocidades durante toda a sua vida e quando vão chegando perto do fim se arrependem e tentam remediar todo o estrago feito. Hoje, porém, no mundo ocidental, influenciado grandemente pela religião judaico-cristã, não é tão simples resolver os pecados cometidos, não só com dinheiro, pelo menos; a culpa cristã ganhou dimensões extraordinárias nas nossas cabeças. Os gregos não sofriam desse mal...
Então, é mais vantajoso ser injusto ou justo?
A justiça é uma espécie de bem, quando fazemos justiça nos sentimos felizes; entendo que justiça seja uma espécie de prática do amor. Deste ponto de vista é mais vantajoso ser justo, pois nos sentiremos bem e, de fato, quando fazemos justiça, ou quando vemos justiça sendo feita, nos sentimos bem. Mas será que o que chamamos de justiça é realmente justiça? Vejamos um simples exemplo do nosso cotidiano: os roteiros cinematográficos comerciais usam e abusam da trama de injustiças sendo resolvida no final com o mocinho prevalecendo sobre o bandido, ou seja, na concepção do roteirista e do público em geral, a justiça sendo feita. Algo que notei é que, cada vez mais, principalmente nas produções norte-americanas, o que vemos é o bandido não somente sendo preso ou levando uma lição que o faz se arrepender por seus atos, ele é torturado, massacrado, explodido, literalmente pulverizado da face da Terra – dá-se um fim ao bandido no limite do que se pode imaginar de mais cruel – ou melhor, de fato, não há limites. Mas se a justiça é uma espécie de prática do amor, não seria um ato injusto tratar o injusto, digo, o bandido, desta forma?
O que se vê nos filmes é a vingança do mal cometido pelo injusto, uma vez que nem sempre as leis, que deveriam ser baseadas no princípio de justiça, dão conta de reparar o mal feito, então parte-se para a justiça “com as próprias mãos”. Mas, se justiça é uma espécie de bem, então como pode ser justo o fato de devolver ao bandido o mal que ele causou? Seria a vingança uma espécie de justiça?
Se a vingança traz um bem-estar parece, então, ser mais vantajoso ser injusto com aqueles que foram injustos conosco. Mas será que a vingança realmente traz um bem-estar? O que traria maior bem-estar a vingança ou o perdão? Parece-me justo que quem cometeu injustiça seja punido, mas no âmbito pessoal, talvez seja o perdão, mais do que a vingança, aquele sentimento que traga maior bem-estar, mas voltemos ao tema.
Há ainda outro aspecto: na busca do bem-estar não basta ser justo, a pessoa justa deve parecer ser justa aos olhos dos outros, para que receba o reconhecimento e as honras por seu comportamento justo. Se o justo parecer injusto, ele será execrado pelo grupo no qual está inserido. O contrário para o injusto que, se parecer ser justo, receberá as honras e o respeito da comunidade. Então o que traz vantagem não é ser justo, mas parecer justo. Por fim, há a tese de que se o homem tiver a certeza de que não será punido pelas injustiças que cometer, ele não terá escrúpulo nenhum cometê-las e mais: ninguém é justo por espontânea vontade, só é justo porque é covarde, ou é velho ou tem qualquer outra fraqueza que o impede de cometer injustiças. Será?
Bem, estes temas estão presentes nos Livros I e II da República de Platão. Deixando a questão da reputação, ou seja, do parecer ser justo, de lado, o objetivo de Platão é mostrar que é melhor ser justo do que injusto e que a justiça é um bem. Tomando o livro II, o que Platão mostra, na voz de Sócrates, é como a injustiça nasce nas cidades, pois para mostrá-la no indivíduo ele a amplia na aglomeração das cidades para que ela fique mais clara, mais evidente. A cidade começa por causa das carências naturais de todos nós. As pessoas que vão formar a cidade têm aptidões diferentes e, para que se busque a sobrevivência da melhor maneira, cada qual com a sua especialidade, produz aquilo que será importante para ele e para o outro; deste modo, o agricultor produz o trigo, o sapateiro, sapatos e assim por diante. Sócrates vai expandindo o raciocínio da formação das cidades até englobar o comércio, os portos e toda a infra-estrutura que existia numa “polis” da época. Ora a injustiça parece surgir quando os homens passam a querer mais do que o necessário: as pessoas se lançam “numa busca infindável de bens, ultrapassando os limites do que é necessário”, vindo daí as guerras e a necessidade de criar um exército. Ele se detém na figura de um guardião (soldado, governante) e suas qualidades tais como astúcia e força. O guardião, para ser bom no que faz, não pode usar a astúcia e a força contra a sua própria cidade – os guardiões devem ser “brandos com os seus, mas rudes com os inimigos”; então, o que vai distinguir quando usar a força e a astúcia e quando não usá-las? A resposta é: o conhecimento - “o que o faz discernir uma figura amiga de uma hostil é que uma ele conhece, a outra não”. Portanto ele deve gostar do conhecimento, ou seja, gostar de aprender. A partir daí, Sócrates discorre sobre o modelo ideal de educação e que os mitos com deuses se prejudicando e mostrando atitudes injustas, não deveriam ser contados às crianças. Ou seja, é a educação pelos bons exemplos que levará a nova geração na direção da virtude. Daí podemos concluir que, segundo Platão, são duas as causas da injustiça: o fato de os homens quererem mais do que o necessário e uma educação fundamentada em maus exemplos.
Ainda não consegui responder a pergunta: o que é justiça? Eu não sei defini-la, mas sei que é melhor viver numa cidade mais justa do que mais injusta. Com leis que garantam punições para aqueles que cometam injustiças, mas não com objetivo de vingança e sim com objetivo de inibir atitudes maléficas para a cidade. Do que eu li até agora em A República, eu achei muito pertinente a idéia de que o fato do homem querer mais do que precisa gera injustiça – a ganância gera injustiça.
sexta-feira, 4 de julho de 2008
Afinal, o que é justiça?
É vício ou virtude? Seria justo prejudicar um inimigo? Essas são questões difíceis de responder. Tentemos definir o que é justiça: justiça poderia ser definida como “fazer o bem e devolver a todos o que é devido”, então seria justo fazer mal aos inimigos, pois a eles o que é devido é o mal? Não me parece correto; para o homem justo, não é certo prejudicar alguém.
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Esta discussão está presente no Livro II de A República de Platão. Quer saber mais? Clique no link: http://docs.google.com/Doc?docid=dgsd2jkm_1rg3sp9cn&hl=en
quarta-feira, 2 de julho de 2008
A República de Platão
Olá a todos,
finalmente, agora que estou em férias, meu blog retorna das profundezas da rede... Eu resolvi começar com A República, porque desde que li este livro de Platão, muitas coisas passaram a fazer mais sentido. É incrível como um filósofo do século IV a.C. possa ainda ser atual no século XXI.
A República está na forma de diálogos entre vários personagens, sendo Sócrates, o principal deles. Sócrates trava uma batalha verbal com Trasímaco a respeito do que é justo... tudo começa daí; a definição da justiça é o pano de fundo dos diálogos que vão, pouco a pouco, descortinando a idéia da República de Platão: para alguns uma utopia, para outros uma ironia... para mim, um espelho e uma revelação.
Vou publicar primeiramente meus resumos dos diálogos, que eu preparei no ano passado, para situar todo mundo na mesma página... Quando chegarmos ao mito das cavernas, aí a coisa fica interessante... Aguardem!
finalmente, agora que estou em férias, meu blog retorna das profundezas da rede... Eu resolvi começar com A República, porque desde que li este livro de Platão, muitas coisas passaram a fazer mais sentido. É incrível como um filósofo do século IV a.C. possa ainda ser atual no século XXI.
A República está na forma de diálogos entre vários personagens, sendo Sócrates, o principal deles. Sócrates trava uma batalha verbal com Trasímaco a respeito do que é justo... tudo começa daí; a definição da justiça é o pano de fundo dos diálogos que vão, pouco a pouco, descortinando a idéia da República de Platão: para alguns uma utopia, para outros uma ironia... para mim, um espelho e uma revelação.
Vou publicar primeiramente meus resumos dos diálogos, que eu preparei no ano passado, para situar todo mundo na mesma página... Quando chegarmos ao mito das cavernas, aí a coisa fica interessante... Aguardem!
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